A Revolução de Chesterton, por João Ameal



I

No seu estudo sobre Robert Browning (1812-1889), recorda Chesterton (1874-1936) a “velha e fecunda fábula” dos cinco cegos em torno do elefante. Um deles, ao sentir-lhe a tromba, afirma tratar-se duma espécie de serpente. Outro encontra uma das suas pernas fortes e cilíndricas e está pronto a jurar que é o tronco duma árvore secular. Para o terceiro, que se lhe encosta, o elefante deve ser um alto e sólido muro. O quarto, agarra-lhe a cauda e julga ter nas mãos uma corda a esfiar-se. Bate-lhe o último nas aguçadas presas e imagina ter diante de si duas lanças enormes e perigosas…

Chesterton conclui: — “Eis toda a filosofia de Browning. Difere dos psicólogos decadentes e impressionistas numa coisa da máxima importância: pensar que, embora os cegos tenham sugerido apenas, acerca do elefante, verdades parcelares, incompletas e, por vezes, estranhamente deformadoras — nem por isso deixa de ser um todo, um todo real e maciço”.

Depois de citar estes períodos, André Maurois (1885-1967) acrescenta que também para Chesterton o Universo se apresenta como um conjunto maravilhoso e sólido — apesar das teorias fantasistas dos intelectuais que tentam interpretá-lo e se enganam tanto como os cegos da fábula. A mim, parece-me que o conto pode também ser aplicado à ideia que a maioria das pessoas formam da vasta personalidade do Autor deste livro. E com maioria de razão, visto haver menos semelhanças entre o Universo e o elefante que entre o elefante e Chesterton, — de quem George Bernard Shaw (1856-1950) assegurava que apenas metade do vulto era abarcado pelos seus interlocutores…

Propositadamente ou não — creio que propositadamente — um grande número de críticos fala de Chesterton como falavam os cegos do elefante. Com a diferença, para pior, de serem, quase sempre, cegos… voluntários. Na ânsia de lhe diminuir a estatura, procuram reduzi-lo a um caso de pitoresca excentricidade. Acontece até que o acusam de graves delitos… Assim se traça um falso retrato do escritor — habitualmente apoiado em um quadro de tendenciosos lugares-comuns: excessivo amor ao paradoxo; rebusca premeditada de originalidade; uso constante do sofisma; sistemática posição de humorista perante a vida e os homens.

Encaradas de frente, sem evasivas, as quatro acusações revertem em seu proveito — se delas se souber fazer os quatro pilares em que o seu gênio poderoso assenta.

Primeiro: excessivo amor ao paradoxo. O próprio Chesterton responde. Enquanto, no início de Ortodoxy (1908) ele condena “o simples paradoxo, maneira engenhosa de defender o que é, por natureza, indefensável”, no capítulo de Heretics (1905) – dedicado a Joseph McCabe (1867-1955), define luminosamente aquela outra espécie que cultiva: “O paradoxo, como o entendo, não é mais do que uma espécie de alegre desafio inspirado pela Fé”. Nunca deparamos, sob a sua pena, os viciosos arabescos duma inteligência em flagrante delito de narcisismo — mas a plena força em uma inteligência dotada, como bem viu Henri Massis (1886-1970) da rara intuição das “misteriosas correspondências” ocultas no Universo. São essas “misteriosas correspondências” que o nosso Autor descobre e revela, com as suas frases de imprevisto recorte. No fundo, busca a unidade na variedade — digamos até: a unidade pela variedade. E se joga com as imagens e as palavras, ninguém respeita mais as exigências basilares do real. Chesterton crê no real — e nisto se mostra superior a tantos falsos “livres-pensadores” que o negam ou o deformam. Mil vezes preferidos, a estes laboriosos e sisudos inimigos do paradoxo que, afinal, caem no imperdoável pecado de contradição da evidência — o pensador autêntico e sincero que sempre coloca a evidência no extremo de cada paradoxo, como estrela a fulgir na ponta duma lança… O amor de Chesterton ao paradoxo é sua maneira de melhor seguir a lição d’Aquele que também escrevia certo — por linhas tortas.

Segundo: excessiva rebusca da originalidade. Mas a originalidade de Chesterton não é rebuscada, antes é espontânea. Di-lo Wladimir Weidlé (1895-1979): “É diferente dos outros, não pela vontade de se distinguir, mas por direito de nascimento e de gênio”. Se bem me recordo, foi Blaise Cendrars (1887-1961) quem deixou, algures, esta confidência preciosa: “Se alguma vez me aconteceu de ser original, foi sem querer”. Chesterton deveria poder confessar o mesmo. Lê-lo, é reconhecer a fluência natural dum temperamento que encontra, sem os procurar, meios seus de expressão e comunicação. Original, sem dúvida, por se identificar ao Mundo sempre igual e sempre diverso — ao Mundo criado, mantido, renovado pelo impulso divino, que, para quem saiba vê-lo e surpreendê-lo em cada hora, é, também, original. Tenhamos presente a bela síntese de Gabriel Gale em The Poet and the Lunatics (1929): “O fim principal da vida humana é olhar sempre as coisas como se as víssemos pela primeira vez”. Já P.B. Shelley (1792-1822) descreveu os poetas como os “homens que abrem todas as manhãs olhos novos para o Universo”. Chesterton abria esses olhos novos todas as manhãs — olhos poéticos, infatigáveis, descobridores do que tão poucos antes dele foram capazes de adivinhar. E, porque, em tudo, encontrava Deus — origem de tudo — como não havia de ser, mesmo “sem querer”, original?

Terceiro: — uso constante do sofisma. Sobre isto, nem vale a pena perder tempo e espaço. O argumento serve para alvejar o adversário a quem se não sabe responder. Tenho ouvido com frequência apelidar de sofistas certos autores cujo crime sem perdão consiste em não deixar aos antagonistas uma saída airosa. Adiante se lerá esta límpida afirmação de Chesterton: “O simples sofisma, com toda a sua futilidade, é uma das coisas que mais atraem o meu absoluto desprezo e, por meu mal, é uma das pechas que mais vulgarmente me lançam em rosto”. Na sua obra, todavia, o sofisma não se descortina. Dá-nos, pelo contrário, a impressão dum raciocínio sequioso de retidão e de justiça — insofismavelmente honesto. Impressão partilhada pelo seu excelente tradutor Charles Grolleau (1867-1940), que lhe aponto, na nota preliminar à edição francesa de The Ball and the Cross (1909), aquela nobre tendency to righteousness (tendência à justiça) exaltada por Mathew Arnold (1822-1888).

Enfim, o quarto termo do libelo: a sistemática posição de humorista. É um fato que, a todo o momento e a todo propósito, Chesterton exercita a sua verve poderosa e desconcertante. Observe-se, porém: uma verve leal, saudável, sem mesquinhez, sem crueldade, sem veneno. Não se tome por sadismo de caricaturista frio a indulgência dum polemista generoso: “Il faut se hâter d’en rire, de peur d’avoir à en pleurer (Devemos nos apressar a rir disso, para que não tenhamos que chorar por isso)”. Chesterton prefere sempre a elegia plangente à franqueza jovial. Diz o que pensa e como pensa. De acordo com outro moralista gaulês, Michel de Montaigne (1533-1592): “Tel sur le papier qu’a la bouche (tanto no papel como na boca)”.

O sentido do seu humorismo, se me afigura, contudo, mais amplo e mais tônico. É a alegria da certeza. Liberto de dúvidas cruéis, de mais inquietações, de angustiosas perplexidades, de amargos conflitos íntimos — sente-se disposto a não querer mal ao adversário, a corrigi-lo com bonomia. Assinalou um crítico arguto: “Os tiranos e os pensadores tristes são-no, em geral, por terem medo; a certeza gera a serenidade”. O riso de Chesterton é a prova da serenidade que constitui a sua maior força. E quando sobe de tom, quando castiga — embora sempre como quem se diverte — traduz a legítima desafronta da inteligência ofendida; exprime uma cólera justa; manifesta, perante as inépcias, os paralogismos, os delírios contemporâneos, a compreensível e normalíssima revolta do Senso Comum.

Essa revolta do Senso Comum é, para mim, uma das chaves da obra de Chesterton: porventura a completa explicação do homem e da sua luta.

II

Eis o momento de elevar o debate, de acentuar que há duas formas de considerar e avaliar o Autor de Ortodoxy.

            Se nos cingirmos ao seu papel na Literatura Inglesa do presente século, limitar-nos-emos a falar da reação que chefiou, ao lado de Hilaire Belloc (1879-1953) – ambos tão unidos e solidários que Shaw, para melhor os combater, inventou um imaginário monstro bicéfalo, o “Chesterbelloc”, contra o esteticismo que em John Ruskin (1819-1900) fora nobremente idealista, em Walter Pater (1839-1894), voluptuoso e enfático e, transformado numa cínica e dissolvente amoralidade, atingia e degenerescência mais impressionante com a triste aventura de Oscar Wilde (1854-1900) — lamentável, expiatório Retrato de Dorian Gray (1890). Chesterbelloc (faça-se a vontade de Shaw) veio a sacudir a frívola, postiça e requintada literatura do tempo; restaurar o sentido católico da arte e da vida; proclamar o direito e o dever duma redescoberta da Natureza como fonte de saúde e alegria; arvorar sobre a debandada do pequeno grupo insuportável e efeminado dos estetas, a clara bandeira duma convalescença servil.

            Mas, se a reação de Chesterbelloc foi um episódio marcante na história literária da Inglaterra de 1900, outras reações se conjugaram para expulsar da cena os pálidos e afetados epígonos de Wilde: a exaltação imperialista de Rudyard Kipling (1865-1936); o largo cientificismo socializante de H.G. Wells (1866-1946); o sarcasmo totalitário e corrosivo de Bernard Shaw.

            Há que apreciar num plano superior a ação e a influência de Chesterton; dentro da grande batalha das ideias que marca o fim dum período de quatro séculos, desde a agonia da Idade Média aos primeiros anos da atual centúria, através do Renascimento, da Reforma Protestante, do Cartesianismo, do Kantismo, do Positivismo, do Evolucionismo, do Cientificismo determinista, do Materialismo dialético — e que marca, também, a gestação de uma Nova Idade.

            Repare-se bem: Chesterton (aliás, junto de Belloc, mas quem nos interessa aqui é o primeiro) não se contentou em pulverizar os últimos resíduos do velho esteticismo; era tarefa demasiada pequena para a sua envergadura e para o seu desígnio. Continuou a ofensiva. Os seus golpes caíram, impiedosos e certeiros, sobre os novos heréticos, sobre a trindade dos grandes leaders: Kipling, Wells e Shaw. Incidentalmente, lançou algumas estocadas a literatos de menor estatura, mas ativos e conhecidos: Georges More, Lowes Dickinson e McCabe. E, a propósito do panegírico do pintor James McNeill Whistler (1834-1903) escrito por Walter Raleigh (1552-1618), formulou, em termos peremptórios e ofuscantes, uma teoria das relações do artista com a sua arte que ilustra magnificamente a visão global e chestertoniana do Homem, da Ética e da Criação.

            Mas por que alargava assim o âmbito da sua campanha? Porque não pretendia apenas destronar uma corrente literária, destroçar um exíguo cenáculo — e substituir-lhe por outro. O seu objetivo era imensamente mais amplo: levar ao fim a revolução a que há pouco aludi: a benéfica, indispensável e salvadora Revolução do Senso Comum.

            Tudo quanto escreveu tende a restituir-nos um Universo natural, acolhedor, protetor, fértil em surpresas maravilhosas — um Universo não tal qual a razão, em transes de pesadelo demiúrgico. Julga recriá-lo, para só conseguir acumular confusões, contradições e negações — mas tal qual o fez Deus: fresco, vibrante, ordenado, previsto pelo Criador, imprevisto para os seres criados, que nunca lhe abarcam o integral conjunto. Gabriel Gale, numa frase condensa tudo: “O homem é uma criatura; toda a sua felicidade consiste em ser uma criatura”. Quem viole essa condição sine qua non da felicidade do homem, da única felicidade possível do homem — esgota-se na perpétua, inútil (e satânica) ânsia de ser, em vez de criatura ciente dos seus limites, émulo grotesco do Criador…

            Chesterton combatia por uma grande causa: reconciliar o homem com Deus e, ao mesmo tempo, com o Mundo. Convencer o homem de que (segundo justamente afirma numa página deste livro), quando quer absorver Deus em si mesmo não sai de si mesmo e quando reconhece que Deus o ultrapassa, ultrapassa-se pelo fato de compreender uma Verdade maior do que ele. E, todavia, incapaz de esconder a sua indignação ou o seu protesto diante das extravagâncias, das ilusões, das invenções absurdas ou das teorias disformes (todas mais pobres que o real), nunca se coloca, perante o adversário, numa posição de irredutibilidade hostil. Ao contrário: o seu fim é levar os cegos a reconhecer que só tem do elefante, noções precárias e relativas; levá-las a admitir uma realidade completa, que não lograrão jamais abranger no seu todo, mas que existe para além da sua percepção deficiente. Há que acreditar nessa realidade, ainda que superior a nós — em vez de a excluir porque até ela, não subimos. E atingir-se-á a ambicionada reconciliação: “Tanto mais certos estaremos do que é o Bem, tanto melhor o descobriremos em todas as coisas”.

            Eis o que chama a posição de Chesterton na batalha das ideias — muito mais importante do que a sua simples intervenção nas letras inglesas de 1900.

            Essa batalha inclui Chesterton, mas transcende Chesterton. Vem de trás, de muito longe. Vem, quanto a mim, da época daquele outro gigante que, num plano infinitamente mais vasto e num domínio infinitamente mais alto, travou o mesmo duelo contra as potências diabólicas do erro e do orgulho intelectual, equivalente ao suicídio intelectual: “Luminosamente, imensamente, cria na Vida; esta possante afirmação ergue-se nas suas primeiras palavras acerca do Ser. O pálido intelectual do Renascimento interroga-se: ser ou não ser?, eis a pergunta; a voz trovejante do maciço Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), replica-lhe: ser, eis a resposta!”. E ainda: “Se o Século XX encontrar de novo um cosmos habitável, devê-lo-á ao Tomismo”. Para tal reconquista, é de justiça acentuar que Chesterton contribuiu como poucos. À semelhança do Anjo da Escola, a sua resposta foi, também, a todas as perguntas do Ceticismo, do Agnosticismo, do Pragmatismo modernos: “SER!”.

III

            Para vencer na batalha das ideias, Chesterton possuía algumas virtudes que servem de modelo e estímulo a quantos seguem, com menores recursos, mas igual boa vontade, a grande linha que atravessa, firme e inabalável, quatro séculos de revoltas, de apostasias, de construções no vácuo, de desvios catastróficos.

            Antes de mais nada: a fé profunda, combativa, construtiva. “É erro grave pensar” diz, em Heretics, “que a ausência de convicções definidas dá ao espírito liberdade e agilidade. Um homem que crê tem o espírito sempre vivo e apto, porque está na plena posse das suas armas”.

            Depois, a coragem. A coragem de atacar todos os mitos em voga, de caminhar ao arrepio da mola intelectual. Mais ainda: de tratar a pseudo-vanguarda do pensamento como deve ser tratada: pela ironia, pela demonstração flagrante da sua insanidade e do seu primarismo. Ante os falsos mestres dum falso progresso, a sua voz clara ruge. Contra os ignaros truísmos da idolatria da liberdade, da indisciplina, da submissão voluntária. “Nada mais fácil do que ser herético. Nada mais fácil do que abandonar-se à força da corrente. O difícil é manter-se no bom caminho”. Adiante: “Cair é sempre mais simples; há uma infinidade de ângulos propícios para a queda e um só que marca esse ponto de equilíbrio em que se fica de pé”. Mostra-nos, assim, que a insubmissão e a negação se acham no plano inclinado do menor esforço — e que o valor e o heroísmo consistem na enérgica reconquista da verticalidade. Como? Pela aceitação desassombrada dum dogmatismo verdadeiramente libertador. Ouça-se o luminoso raciocínio de Chesterton:

            “O vício da concepção moderna do progresso intelectual é que insiste sempre em quebrar grilhões, demolir barreiras, repudiar dogmas. Ora, se existe um fenômeno de desenvolvimento intelectual, será o do desenvolvimento de convicções gradualmente mais nítidas, de dogmas cada vez mais numerosos. O espírito humano é uma máquina feita para tirar conclusões; se não o consegue, é porque está avariada. Quando nos falam dum homem demasiado inteligente para crer, falam-nos duma coisa que tem toda a aparência duma contradição em termos. Poder-se-ia definir o homem: um animal que fabrica dogmas. Se acumula doutrina sobre doutrina e conclusão sobre conclusão para edificar um formidável sistema religioso e filosófico, torna-se, no único sentido legítimo do termo, mais humano. Se rejeita as doutrinas uma por uma, com requintado ceticismo, se recusa deixar-se encerrar em qualquer sistema, se declara ter ultrapassado a idade das definições, se pretende já não acreditar na finalidade, se se instalar como Deus na própria imaginação e observa todas as formas de crença sem partilhar de nenhuma — retrocede, lentamente, ao vago estado dos animais errantes, à inconsciência da erva. As árvores, efetivamente, não têm dogmas. Os legumes dão mostras duma singular largueza de espírito. Repito, pois: se é viável um progresso intelectual, deve ser um progresso na construção duma filosofia definitiva da vida”.

            Além da sua fé, da sua coragem, do seu dogmatismo, resta-me louvar a sua humildade — síntese e resultado de todas as outras virtudes. A nossa época, e não apenas a nossa época, mas aquelas que a precederam, sofreram e ainda sofrem do mal terrível da falta de humildade intelectual. Daí as mil teorias errôneas edificadas só para não se prestar à Verdade a pura homenagem dum acatamento sem reticências. Cada filósofo quer ter a sua visão, a sua hipótese, o seu sistema. E todos voltam, mais ou menos, as costas ao real — porque o real é uno e a mentira é múltipla; enquanto na clara e simples adesão ao real há um só lugar para todos, na deformação ou no repúdio do real cada qual pode talhar para si um domínio opulento, que apenas tem o defeito de não existir…

            Chesterton escolhe a direção oposta. No preâmbulo de Orthodoxy, convidado a expor a sua filosofia, ele faz, sem vacilar, esta nobre confissão prévia: “Não lhe chamarei a minha filosofia, porque não fui eu que a fiz. Deus e a Humanidade a fizeram; ela me fez a mim”. E, três páginas corridas: “Sou o homem que, com a maior ousadia, descobriu aquilo que já fora descoberto muito antes”.

            Com a maior ousadia — sublinhe-se. Os menos ousados contentam-se com as fábulas arbitrárias do seu pobre engenho — transidos de susto ao recear que os acusem de dizer o que antes deles foi dito. Porque não ousam repetir as palavras de Verdade, a sua obra pulveriza-se e some-se, numa decomposição instantânea — enquanto vive, triunfa e perdura a obra dos que sabem, todas as manhãs, abrir olhos novos para o Mundo e merecem, por isso, ver todas as manhãs novos aspectos da Verdade permanente.

IV

            O aparecimento, entre nós, dum livro como Ortodoxy é um sinal a mais de que, na batalha das ideias, se atinge um momento crucial: aquele em que se travam os combates decisivos. Outras obras de Chesterton foram, não há muito tempo, traduzidas para a nossa língua — salientarei The Man Who Was Thursday (1908), essa “refutação simbólica do maniqueísmo” como definiu, lucidamente, um crítico. Mas nenhuma delas tem a envergadura e o significado das que verdadeiramente o situam entre os maiores: Heretics (1905), The Ball and the Cross (1909), Manalive (1912), The New Jerusalem (1920), Saint Francis of Assisi (1923), The Everlasting Man (1925), The Superstitions of the Sceptic (1925), The Poet and the Lunatics (1929), The Ressurrection of Rome (1929), Saint Thomas Aquinas (1933) e, acima de qualquer outra, Ortodoxy (1908).

            Ao ter a honra de prefaciar a tradução desta última pelo professor Eduardo Pinheiro, nem por sombras me proponho a apresentar Chesterton aos leitores portugueses. Só Chesterton pode apresentar-se a si próprio e ninguém melhor o fará. Seria antes a altura de tentar — como talvez o Mestre o fizesse em caso idêntico — apresentar os Portugueses a Chesterton.

            Como irá reagir o nosso público a uma obra de tanta importância e de tanta magnitude — que o obriga a uma fecunda tensão de espírito e lhe oferece um dos mais belos e originais ensaios de apologética escritos no nosso tempo?

            Recapitulemos, sumariamente, alguns dos nossos principais defeitos, que poderão impedir-nos ou dificultar-nos a plena compreensão de Orthodoxy.

— A incapacidade para a análise minuciosa, que nos arrasta, por vezes a juízos simplistas e levianos;

— Certa impulsividade, resultante duma impaciência mal dominada, que nos leva a preferir o mais fácil ao mais difícil; e já vimos como é muito mais fácil dar ouvidos ao canto de sereia da heresia, aparentemente libertadora, do que trilhar os duros caminhos da libertação pela humildade e obediência à Verdade;

— Aquela desconfiança um tanto mesquinha que nos faz retrair-nos perante o homem que nos diz verdades amargas e abrir-nos ao que nos brinda com lisonjeiras mentiras;

— Um dramático, quase mórbido, receio da grandeza alheia causado pela excessiva noção da inferioridade própria e por um feio sentimento de emulação corrosiva.

Há, porém, as qualidades portuguesas, que compensam e até superam os defeitos:

— A valentia aventurosa de que demos, na História, provas extraordinárias, e nos permitiu chegar e vencer onde outros recuavam e tremiam — pronta sempre a empreender as expedições mais árduas e a suportar os máximos riscos, por amor da glória e do seu prêmio;

— A imaginação lítica, apta a sentir e a descobrir as grandes harmonias e correspondências do visível e do invisível;

— O natural sentido do equilíbrio, que fortalece a “humana linha média” do nosso perfil de povo construtor da civilização;

— Por outro lado: o pendor cavalheiresco para a defesa das causas mais nobres, ainda quando se afiguram, à mediocridade da avaliação comum, semelhante a causas perdidas.

— Enfim, resumo e cúpula: o espírito de missão, que nos confere sobre-humanas energias quando se trate de tomar sobre os ombros uma empresa de sacrifício, de vocação e de apostolado.

            Por tudo isto me convenço de que, apesar da conjunta dos pequenos demônios ativos e pérfidos em cada um de nós, as grandes forças de Portugal de sempre, visto sub specie aeternitatis, nos tornam particularmente capazes de escutar e entender a grande voz de Chesterton em seu apelo ecoante de Orthodoxy.

            Confiemos naquela “medievalidade” que Gonzague de Reynold (1880-1970) apontou como “a constante da civilização portuguesa!”. Ainda há poucos dias, o escritor brasileiro Gustavo Barroso (1888-1959), repetia: “A alma de Portugal mergulha as suas raízes na Idade Média, onde sugou a Fé que lhe deu forças para, depois, construir o Império”. A essa alma perene de Portugal se dirige o escritor que, em Heretics, proclama: “Regresso aos métodos doutrinais do século XIII na esperança de chegar, por fim, a alguma coisa”; que, no Saint Francis of Assisi, saúda o mesmo século XIII como “talvez a única época do progresso de toda a História”; que, em The New Jerusalem, esclarece: “Os homens sabem que tomaram o mau caminho porque sabem que se encontram em má situação. Para isso, não é necessário idealizar a Idade Média; basta ver a realidade do mundo moderno. Talvez a Idade Média não estivesse acima da mediania, mas não há dúvida de que o mundo moderno está abaixo. A sociedade da Idade Média não seria ainda a sociedade perfeita; era, contudo, a boa estrada ou, pelo menos, o início da boa estrada”.

A este autor, que lhes faz ouvir uma linguagem neomedieval, firmada nos eternos alicerces do Senso Comum e constantemente iluminada pela radiosa presença da Transcendência — os Portugueses hão de responder, como é indispensável que respondam, como a sua fisionomia ético-histórica lhes impõem que respondam uma vez mais.

Orthodoxy poderá ser o estandarte da nova cruzada interior, da nova recuperação pela fidelidade à “constante da civilização portuguesa”, ao espírito de missão que caracterizou, em oito séculos, a nossa gente e o nosso esforço — nos quatro cantos da Terra.

V

            Esta batalha — assinalei atrás — inclui Chesterton, mas ultrapassa Chesterton. Trata-se, como fim, da reconciliação do homem com Deus, pelo acatamento da Sua Lei e da Sua Onipotência; e, como meio da inteligência ao real, obra e expressão de Deus ante os olhos do homem. Batalha da Ortodoxia — travada nas páginas que seguem, com vigor, agilidade, entusiasmo e eficiência.

            Se o grande livro de Chesterton concorrer para nos aproximar da vitória, tanto melhor! Os Editores, o Tradutor e mesmo quem escreve este prefácio, cada qual no grau em que para tal vitória trabalhou — nela terão a sua parte. Dar aos Portugueses, numa boa hora turva de guerra total e de total incerteza, um livro como o Orthodoxy, é uma boa ação. Uma boa ação oportuníssima — quando o inimigo procura enfraquecer e intoxicar a consciência renascida da Nação com uma ofensiva editorial bem organizada, que verte para a nossa língua ondas de volumes perigosos e subversivos. Orthodoxy servirá de espessa couraça flamejante e sólida, contra essa chuva de golpes traiçoeiros. Se deles nos soubermos defender com humildade, que é justa visão de nós mesmos e com a certeza, que é visão segura do Mundo; isto é: com as armas decisivas da Ortodoxia — seremos invulneráveis e seremos os vencedores!

            Ganha a batalha, talvez, pelas gerações adiante, o nome de Chesterton venha a apagar-se, pouco a pouco. E isso não será trágico nem injusto. Será mesmo, suponho, o que o próprio Chesterton desejaria. Certos homens, na ocasião da sua morte, dão-nos a impressão de sobreviverem. Outros, pelo contrário, de estar em plena juventude e em plena ação. A morte, nesta segunda hipótese, longe de ser o naufrágio duma sombra na eterna sombra — é esbater gradual dum perfil de luz na eterna luz.

Assim veremos, sem dar conta, desaparecer o vulto do gigante. Quando tiver desaparecido de todo, a claridade rejubilará, talvez, sobre o Mundo — devolvido ao seu verdadeiro caminho. O profeta terá cumprido a sua missão. Diante de nós estarão largamente abertos os radiosos pórticos da Idade Nova!

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