A Ordem Natural e Sobrenatural em G. K. Chesterton



«Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; mande ele aos peixes do mar, às aves do céu, aos bichos e a todos os répteis que se movem debaixo do sol.» Então, com o barro da terra, Deus formou o corpo do homem: bafejou nesta matéria ainda inerte um sopro de vida, e o homem levantou-se, alma vivente, e Deus o nomeou Adão, que significa: tirado da terra.

        — Monsenhor Cauly[1]

Há alguns dias, um amigo meu, João Medeiros, a quem muito estimo, comentou um ocorrido em sua vida. Ao compartilhar um de meus pequenos textos, um compadre seu veio-lhe comentar que eu critico a todos – o que é verdade. Mas, em minha defesa, mencionarei o Doutor Angélico, dizendo que nenhum homem razoável sofre detrimento, senão em nome de um bem maior – bem este que tentarei mostrar aqui. Acrescentou, também, dizendo que além das críticas curtas que geralmente faço, deveria eu escrever textos mais longos, talvez crônicas; e, somado a tudo isto, com uma confiança que não tenho em mim mesmo, quem sabe algo mais. Assim, eu deveria escrever. Escrever meu Hereges. Escrever meu Ortodoxia.

Deus, ao criar os seres, criou-os com uma natureza[2], que é aquilo pelo qual algo é aquilo que é. A natureza, portanto, é aquilo que constitui alguma coisa em grau e que o faculta a operar de acordo com a mesma natureza definida. Assim, a natureza do gato – perdoem a tautologia em nome de um entendimento expresso – é o que faz o gato operar de modo determinado, do modo de gato. O mesmo se dá com todo o resto da criação, incluindo os homens. Não temos nenhuma exigência e nenhuma grandeza superior àquela de nossa própria natureza, a saber, nossa racionalidade, mas Deus, em Sua infinita bondade, quis que nós, homens, participássemos de Sua vida. Assim, além de existir a ordem natural das coisas, a que nos faculta a agir como homens, também há a ordem sobrenatural, que nos faz ser algo além do que qualquer esforço próprio poderia alcançar.

Se Deus tivesse nos criado somente com os dotes naturais, o homem teria tido, em sua vida, apenas a atividade da razão, com seus conhecimentos naturais, as ciências, a filosofia e o conhecimento de Deus, já que a razão pode chegar ao conhecimento certo de Deus, como nos afirma dogmaticamente o Concílio Vaticano I:

        

“Se alguém disser que o Deus uno e verdadeiro, Criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas – seja excomungado”.

Teríamos, como reitera o dogma do primeiro Concílio Vaticano, o conhecimento de Deus, de nossa natureza e tudo aquilo que dela decorre:

A este conhecimento exclusivamente racional, teria correspondido uma atividade puramente humana, individual e social. O indivíduo, a família, a nação, a vida internacional seriam regidos por essa lei moral que está impressa nas consciências. Deveríamos organizar a vida tendo a Deus como centro, autor da ordem natural.

E tudo isto com as forças próprias de nossa natureza! É com o auxílio e o concurso divino à nossa operação de ordem natural que Deus concede a todas as criaturas, e não com a graça”[3].

Com efeito, sendo o homem capaz de captar apenas as leis impressas na consciência, com um conhecimento indireto de Deus, mediante raciocínio e de modo analógico[4], teria ele uma vida puramente humana por meio dos elementos ligados à sua própria natureza, e, por fim, ao morrer, teria um recebimento de Deus; um prêmio ou uma pena, sendo o prêmio, evidentemente, uma felicidade natural, já que qualquer coisa além excederia sua natureza.

Não quis Deus, porém, que assim o fosse. Ao criar-nos, elevou o homem a um estado superior; elevou-o à ordem sobrenatural. Por natureza somos homens, mas pelo infinito amor de Deus somos Seus filhos. Através da graça de Deus somos transformados, elevados, divinizados. Deus nos faz participantes de Sua natureza. Somos seus filhos adotivos. E é nessa dignidade que Gilbert Keith Chesterton desenvolverá toda a sua obra.

Nascido em berço e país não católicos, G. K. Chesterton é, no quadro da história, um ponto singular. Já no início de sua carreira, quando recém-convertido ao anglicanismo por influência de sua esposa, Frances, Gilbert mostra sua singularidade:

“Você não pode se evadir da questão de Deus; se você fala sobre porcos ou sobre a teoria binomial, você ainda está falando sobre Ele. Agora, se o cristianismo for o que o Sr. Blatchford colocou na cabeça que é, um fragmento de absurdo metafísico inventado por algumas pessoas, então, é claro, defender o cristianismo significará simplesmente repetir esse absurdo metafísico infinitamente. Mas, se o cristianismo for verdadeiro – isto é, se seu Deus é o verdadeiro Deus do universo –, então defender o cristianismo pode significar falar sobre qualquer coisa ou tudo. As coisas podem ser irrelevantes se a proposição do cristianismo for falsa, mas nada pode ser irrelevante se a proposição do cristianismo for verdadeira”.[5]

        O trecho é de um artigo do ano de 1903, mas vemos, já no jovem Chesterton, algo raro, tão raro que em muitos de nós não conseguimos encontrar sequer um rastro. Chesterton terá suas dificuldades em relação à sua conversão ao catolicismo, sobretudo por ter decidido esperar para que sua esposa, Frances, se convertesse, como confidencia o Padre John O’Connor, amigo pessoal dos Chestertons:

“Ele [Chesterton] vai precisar de Frances para levá-lo à Igreja, para encontrar a página certa do devocionário, para examinar sua consciência para quando ele for se confessar. Nunca superará estes obstáculos sem ajuda.”[6]

Essa foi uma das maiores cruzes da vida de Chesterton. E, analogamente, uma das frases de um personagem seu, Patrick Dalroy, d’A Taberna Ambulante, pode ser aplicada a ele mesmo: “Deus sabe que eu não me tenho na conta de bom; mas vez ou outra, até mesmo um patife tem de lutar contra o mundo como se fosse um santo[7]. Contudo, apesar da patifaria, de não ter dado um passo à frente, mesmo sem ela – coisa que levará alguns anos para acontecer –, vemos em sua juventude e em sua inicial carreira de escritor um espírito verdadeiramente católico, um espírito que reconhece a ordem natural e sobrenatural, e que vê a elevação daquela ordem por esta. A revelação supõe a razão e lhe acrescenta novas luzes: luzes divinas[8].

        É por esta razão que Chesterton está sempre falando em Deus. Toda sua obra desenvolver-se-á em torno do reconhecimento da dignidade de sermos filhos adotivos de Deus. As trivialidades mais tremendas terão, para ele, um novo significado, pois é desde essa perspectiva, de nossa natureza elevada pela graça, que para G. K. C. as coisas ganharão o verdadeiro sentido:

“Todas as piadas sobre homens sentando em seus chapéus são, na verdade, piadas teológicas; tratam da dupla natureza do Homem. Referem-se ao paradoxo primário de que o homem é superior a todas as coisas ao seu redor e ainda assim está à mercê delas”.[9]

Vemos isso sobretudo em seus contos do Padre Brown, em que, com muita razão, é dito que, enquanto para Aristóteles a tragédia representava ações de homens superiores a nós, ao passo que a comédia, pelo risível ou ridículo, representava ações de homens inferiores a nós – distinção própria do paganismo –, após Cristo, porque o nome cristão é loucura para o mundo e motivo de escárnio para os ímpios, é perfeitamente possível mostrar uma personagem risível mas, ao mesmo tempo, superior a nós. É o que se dá com o Padre Brown, padreco feio, de aparência desagradável e de gestos cômicos, e que, todavia, tem as virtudes da santidade, incluindo a humildade. Trata-se da comédia cristã, que se dá porém no quadro dramático da salvação ou da condenação eternas; e nela Brown jamais deixa de ser, justamente, sacerdote, razão por que nunca descobre o criminoso sem a intenção de que a confissão lhe alcance o perdão dos crimes.[10]

Na Idade Média, além dos sete pecados capitais, os tratados de moral costumavam ter enumerados um a mais: o da tristeza. O homem medieval – e nisso Chesterton o era por excelência – era capaz de deleitar-se porque estava ancorado na esperança.[11] Chesterton perdeu todas as guerras que batalhou. Tudo aquilo que lhe era caro ruiu. Mas nunca perdeu a alegria e a confiança, pois a verdade é que, como afirma Monsenhor Guéranger:

“Deus não pede que vençamos o bom combate, mas que o combatamos – sempre. Ademais, por fim, ainda que Deus não queira que o vençamos agora – seus desígnios sempre se ordenam ao conjunto da história e sua consumação na Parusia –, não podemos, os católicos, aparecer diante da nação como apêndice de nenhuma outra corrente política. Devemos aparecer com face e identidade próprias.”[12]

Assim procede Chesterton. Não só na história, mas em todos os acontecimentos da vida humana, ele vê a ação da Divina Providência, vê a ação de Deus e a concorrência da História, e de todas as histórias, para os pólos da esperança. Dizem que cada enamorado sabe perfeitamente que sua bem-amada tem uma insubstituível singularidade, mas somente depois da recuperação da normalidade podemos compreender que é extremamente romanesco amar o seu padeiro, pois ele, ao mesmo modo, é único e caminha para o mesmo destino.[13]

E por termos todos este mesmo fim, por Deus ter-nos elevado além do que nossa natureza exige, que Chesterton passou sua vida a falar da Revelação. Em 1922, logo após seu batismo sob-condição e sua conversão oficial, G. K. C. escreve um poema que elucida o cume de toda a sua trajetória:

“E todas essas coisas são menores que poeira  para mim,

porque meu nome é Lázaro e eu vivo.”[14]

Ele vivia. Chesterton já defendia a fé católica como nos atestam seus amigos pessoais, como o Padre O’Connor e estudiosos de sua vida:

Gilbert sempre foi um hábil e perspicaz defensor de todos os ideais católicos, como é manifesto em seu livro chamado Ortodoxia, e em muitos outros.[15]

Mas Chesterton quer, na prática, defender as ideias católicas em sentido próprio: ele se exprime na maior parte das vezes como um fiel católico, ou, pelo menos, como um membro da Alta Igreja da Inglaterra.[16]

À primeira vista o catolicismo apresenta-se como uma flor tardia desta planta robusta que é Chesterton. Sua conversão data de 1922: ele tem quarenta e oito anos. Ele tinha apenas quatorze anos de vida: apenas um terço de sua vida ativa [já que ele viria a falecer em 1936]. No entanto, este último período não é o único a merecer o rótulo católico: é apenas a formalização, por assim dizer, de uma evolução cujas primeiras raízes mergulham no solo da juventude mais tenra. Nasce então um germe cujo processo de crescimento poderia ser qualificado como ortogênese. Uma espécie de catolicismo implícito arde para eclodir no alvorecer da idade adulta, animar sua atividade borbulhante e finalmente se revelar sem verniz, se não com uma certa ostentação alegre.[17]

E, se ainda há dúvida, deixemos o próŕio Gilbert falar por si:

A mudança que fiz foi de anglo-católico para católico romano. Sempre acreditei, pelo menos por vinte anos, na visão católica do cristianismo. A menos que a Igreja da Inglaterra fosse um ramo da Igreja Católica, eu não via utilidade para ela. Se fosse uma Igreja Protestante eu não acreditaria nela de forma alguma.[18]

 Antes de sua conversão, Chesterton convidou inúmeras pessoas para que vivessem, mas agora era ele quem vivia. Convidava, mas não como quem tenta esconder a Fé. A respeito desse assunto, Dom Prosper Guéranger nos adverte:

“Se hesitas em proclamar os milagres mais evidentes, se procuras explicações atenuantes dos prodígios, com risco de desmantelar a fé dos teus leitores; se deixas as profecias, se dissimulas a santidade e sua ação, para pôr em cena homens, grandes homens sem dúvida; mesmo que confesses a divindade da Igreja, conseguirás principalmente que ela seja vista como sociedade humana; em resumo, não negas o sobrenatural, mas o escondes por medo de assustar e para que pareças homem do teu tempo. Santo Agostinho e Bossuet fizeram o contrário”.[19]

A respeito disso, Chesterton foi sempre franco. Seus próprios críticos nos atestam esse fato, já que

“os críticos se divertiram com seus epigramas e seus paradoxos. E, embora ele parecesse estar defendendo a fé cristã [e tudo o que nela há de sobrenatural], eles assumiram que ele estava fazendo isso apenas para chocar. Mas quando descobriram que ele acreditava na fé cristã, e não a defendia apenas para chocar, eles ficaram, bem… chocados.”[20]

        E, de fato, as alegações religiosas de Chesterton são… chocantes e nada convencionais, sobretudo se se toma os dias atuais como parâmetro. Em Ortodoxia, livro de 1908, Chesterton escreve:

                

As teorias do contrato social do século XVIII foram atacadas de forma bastante estabanada em nossos dias; na medida em que diziam que por trás de todo governo histórico há uma ideia de concordância e cooperação, tais teorias eram demonstravelmente verdadeiras. Mas estavam realmente erradas na medida em que sugeriam que os homens buscaram a ordem ou a ética diretamente numa negociação consciente de interesses. A moralidade não começou com um homem dizendo a outro: "não irei rachar sua cabeça se você não rachar a minha"; não há a menor evidência dessa transação. Mas há evidência de que ambos disseram: "não devemos nos atacar diante do santuário". Eles conquistaram sua moralidade protegendo sua religião. Não cultivaram a coragem. Lutaram pelo santuário e descobriram que se tornaram corajosos. Não cultivaram o asseio. Purificaram-se para o altar e descobriram que estavam limpos. A história dos judeus é o único documento primitivo conhecido pela maioria dos ingleses, e é suficiente para um julgamento dos fatos. Os Dez Mandamentos, que se descobriu serem substancialmente comuns a toda humanidade, eram meras ordens militares; um código de ordens regimentais, criado para proteger certa arca em sua passagem por um certo deserto. A anarquia era má porque ameaçava a santidade. E somente quando criaram um dia consagrado a Deus descobriram que tinham criado um feriado para os homens.[21]

        Desse modo, Chesterton se coloca contra o naturalismo, tão comum de sua época e da nossa, que visava remover completamente o elemento sobrenatural da vida humana, ou  ao menos diminuí-lo, colocando-o em segundo plano, tomando outras coisas como prioritárias. Em seu livro Hereges, de 1905, vemos:

A estranha verdade sobre o assunto pode ser vista na própria palavra "feriado" [holiday]. Um feriado bancário significa, possivelmente, um dia que os banqueiros consideram sagrado [holy]. Um dia de meio expediente [half-holiday] significa, suponho, um dia em que o estudante fica apenas parcialmente santificado. É difícil ver, a princípio, por que uma coisa tão humana quanto o lazer e os divertimentos devam ter sempre uma origem religiosa. Racionalmente, parece que não há razão por que não devamos cantar e dar presentes em honra de qualquer coisa – seja pelo nascimento de Michelangelo ou pela inauguração da Estação Euston. Mas a coisa não funciona assim. De fato, os homens somente se tornam ambiciosa e gloriosamente materialistas a respeito de algo espiritual. Desconsideremos o Credo de Nicéia e coisas similares, e traremos alguma estranheza injusta aos vendedores de linguiça. Desconsideremos a estranha beleza dos santos e o que nos restará será a estranhíssima infâmia de Wandsworth. Desconsideremos o sobrenatural e o que permanecerá será o artificial."[22]

        Chesterton, com sua percepção de que o homem foi elevado a um plano real mais alto do que as próprias estrelas acima de nós, quando Cristo chorou por ele, [23] coloca-se contra a secularização que dominava em sua época, e parece reinar sobre a nossa. Com efeito, coloca-se ele ora contra progressistas, ora contra conservadores, pois se é verdade que ao católico concorre que deve analisar os acontecimentos de acordo com o elemento sobrenatural, de modo que tudo que expressa, mantém ou propaga o elemento sobrenatural é vantajoso e útil, ao passo que tudo que o contraria, debilita e o destrói é desvantajoso e funesto, não pode cair em reducionismo, esquecendo-se do fim último do homem, coisa sempre presente na obra de Chesterton.

Não podemos, portanto, considerar apenas aspectos políticos, econômicos ou sociais, nem tomá-los por prioritários, esquecendo-nos da única coisa que importa; em outras palavras, não podemos colocar o fim do homem em bens que, apesar de úteis, deleitáveis ou honestos, não contribuem para a salvação do homem, pois nada importa, exceto o destino da alma:[24]

Mas, na verdade, o conservador tem exatamente o mesmo erro que o progressista. Consiste no fato de que cada um deles permite que a verdade seja determinada pelo tempo. Ou seja, ele julga uma coisa pelo que é ontem, hoje ou amanhã, e não pelo que é na eternidade.

Não é razoável pintar a cidade de vermelho, no sentido de pintar os postes de luz de vermelho, porque a caixa de correio é vermelha. Ou seja, não é razoável aplicar uma ideia, como a ideia de coletivismo, à complexidade de toda a comunidade. Mas há uma ideia que é ainda mais irracional. E isso é entrar na cidade numa bela manhã e descobrir que três dos postes de luz já foram pintados de vermelho, enquanto cinco deles ainda estão verdes, e então jurar que essa proporção particular de cores é tão sagrada e imortal quanto as jóias coloridas da Nova Jerusalém. Em suma, é dar o peso da imortalidade ao momento particular em que um determinado homem entra na cidade. E o mesmo vale para o momento específico em que um homem específico entra no mundo. O que acontece com o conservador é que ele atribui uma importância sobrenatural ao seu próprio aniversário. Em vez de datar nossa era do nascimento de Cristo, ou (se você preferir) do nascimento de Marco Aurélio ou Sra. Eddy, ele data inteiramente de seu próprio nascimento. O que estava lá, quando ele nasceu, é a Constituição britânica e deve ser reverenciada. O que ainda não havia acontecido, naquela data específica, é a Revolução Bolchevique e deve ser resistida. Em vez de considerar um processo e testá-lo por um princípio, ele apenas considera até onde esse processo já foi, e o testa apenas para saber se está indo mais longe.[25]

         Desconsideremos o sobrenatural e o que permanecerá será o artificial.[26] Contudo, enquanto no progressista vemos a negação do sobrenatural de um modo explícito, no conservador o vemos de modo velado, e é essa a sua maior periculosidade, pois a falsidade nunca é tão falsa quanto quando está muito próxima da verdade[27]. Alguém ficaria assustado ao ser convidado para sentar-se em uma cadeira caída, que não pode suportar uma pessoa; mas alguém poderia ficar tentado e achar sensato, caso o convidassem a sentar numa cadeira com uma boa aparência. Desse modo, alguém poderia ficar assustado ao ser convidado a sair de casa para enforcar o rei ou o patrão, mas alguém poderia achar sensato preservar algo só porque estava lá quando nascemos, sem ter a consideração de que se algo deve ser preservado, como disse Chesterton no citação acima, é apenas por seu valor na eternidade. Eternidade esta, como enunciado em seu O Converso, que só podemos encontrar na Igreja Católica. A única que realmente possui os distintivos da verdadeira Igreja, a saber, a santidade, unidade, apostolicidade e catolicidade. Sobre isso, Chesterton nos diz que “a menos que a Igreja da Inglaterra fosse um ramo da Igreja Católica, eu não veria utilidade para ela. Se fosse uma Igreja Protestante eu não acreditaria nela de forma alguma.”[28], pois  “o catolicismo nos dá uma doutrina, coloca lógica em nossa vida”.[29]

        Chesterton não quis, assim como os naturalistas, sejam eles conservadores ou progressistas, preservar ou revolucionar coisas apenas para ter algum tipo de bem temporal, seja esse bem o avanço da cultura, da economia, do bem-estar; ele sempre quis, como nos atesta seus próprios escritos e, com muita razão, a Irmã Marie Virginia,

restaurar a fé e a cortesia medievais com as quais é evidente que os modernos perderam o contato. Ao falar do espírito que negou a fé e sitiou as cidadelas sagradas do medievalismo, Chesterton tranquilizou seus semelhantes, lembrando-lhes que algumas lanças nunca foram quebradas [...]. Foi uma alegria para ele saber que os homens ainda estão travando guerras santas, estimulados pela memória do passado glorioso, quando bravos homens de tempos cruéis ansiavam por enfrentar o fogo rápido do ataque inimigo. A morte continha para tais homens a promessa eterna de estar gloriosamente vivo.[30]

        Como bem explicita Rubén Caldéron Bouchet a respeito de William Harbour, notório teórico do conservadorismo, na necessidade de falar também pelos protestantes, o dito teórico possui dupla linguagem, caindo em contradição contra a própria fé, ao afirmar que

“Deus não fez o homem para si mesmo, mas o homem precisa de Deus para ordenar sua própria existência individual e socialmente. [....] esta máxima coloca a religião como um regimento essencial da boa sociedade, considera o homem como um ser religioso, ele deve adotar certa orientação religiosa em sua vida se quiser que ela seja devidamente ordenada e que a sociedade seja estável, moralmente saudável e livre”.[31]

 

Sem perceber, como afirmará o mesmo Bouchet, o conselho de Jesus “busque o Reino de Deus e sua justiça, que tudo o mais lhe será concedido por acréscimo” sofreria, nas mentes conservadoras, uma transposição que invalidaria totalmente sua eficácia redentora. O conservador parecia aconselhar que, para salvar os acréscimos, era conveniente buscar o Reino de Deus e sua justiça”.[32] A inversão parece ser mais atual do que nunca, porém, Chesterton nunca caiu nela, como vemos, quando ele reconhece os acréscimos, mas sem perder de vista a conversão:

Não suponho que todo distributista seja católico; nem, acrescentarei, que todo católico é um distributista. Mas acho que tenho todo o direito de tentar converter um distributista ao catolicismo, assim como tenho de tentar converter um católico ao distributismo.[33]

Sua franqueza ganhava a todos, pois como diz São Pio X a respeito de como deve ser o jornalismo católico, “a verdade não quer disfarces, nossa bandeira deve ser desfraldada; é somente por meio da lealdade e da franqueza que poderemos fazer algo de bom, combatidos, certamente, por nossos adversários, mas respeitados por eles, de maneira a conquistar sua admiração e, aos poucos, seu retorno ao bem”.[34]

        A história, se quiser ser verdadeira, deve ser católica, pois o catolicismo é a verdade completa; assim, a verdadeira exposição de Chesterton, se quiser ser verdadeira, deve também ser católica, pois foi o catolicismo a luz que iluminou a grande mente de G. K. Chesterton. Em seu estudo sobre Robert Browing, Chesterton recorda a fábula dos cinco cegos em torno do elefante. Um deles, ao sentir a tromba, afirma tratar-se duma espécie de serpente. Outro encontra uma das suas pernas fortes e cilíndricas e está pronto a jurar que é o tronco duma árvore secular. Para o terceiro, que se lhe encosta, o elefante deve ser um alto e sólido muro. O quarto agarra-lhe a cauda e julga ter nas mãos uma corda a esfiar-se. Bate-lhe o último nas aguçadas presas e imagina ter diante de si duas lanças enormes e perigosas…  O mesmo poderíamos dizer a respeito dele. Analisam uma de suas partes, e concluem que ele é uma coisa; analisam outra parte, e concluem que é outra. Ninguém, contudo, consegue vê-lo por inteiro. A ordem natural e sobrenatural, eis o que devemos ter em mente. Essa é a chave para a compreensão de Chesterton. Sem ela, podemos nos valer das ideias de Chesterton, mas jamais conseguiremos explicá-lo, assim como nenhum cego conseguiu explicar o elefante.

        

Se você leu até aqui, não se esqueça de deixar nos comentários a sua crítica ou elogio, ambos serão bem recebidos.



Texto escrito por William Christopher



[1] CAULY, Monsenhor. Curso de Instrução Religiosa - II. Livraria Paulo de Azevedo, 1930, p. 17.

[2] OLGIATTI, Monsenhor Francisco. O Silabário do Cristianismo. Editora S. C. J., 1940, p. 48.

[3] OLGIATTI, Monsenhor Francisco. O Silabário do Cristianismo. Editora S. C. J., 1940, p. 54.

[4] OLGIATTI, Monsenhor Francisco, O Silabário do Cristianismo. Editora S. C. J., 1940, p. 55.

[5] Daily News, 19 de Dezembro de 1903.

[6] WARD, Maisie. Gilbert Keith Chesterton. Sheed & Ward. 1943, p. 379-80.

[7] CHESTERTON, G. K., A Taberna Ambulante. Instituto Hugo de São Vitor. 2018, p. 84.

[8] OLGIATTI, Monsenhor Francisco, O Silabário do Cristianismo. Editora S. C. J., 1940, p. 61.

[9] CHESTERTON, G. K. Considerando todas as Coisas. Ecclesiae, 2013, p. 33.

[10] CHESTERTON, G. K. Inocência do Padre Brown. Prefácio de Carlos Nougué. Instituto Hugo de São Vítor, 2018, p. 9-10.

[11] SAENZ, Padre Alfredo. A Cristandade e Sua Cosmovisão. Editora Centro Dom Bosco, 2020, p. 66.

[12] NOUGUÉ, Carlos. Estudos tomistas II.

[13] CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. Vide Editorial, 2017, p. 159.

[14] CHESTERTON, G. K. The Ballad of St. Barbara. Cecil Palmer, 1928, p. 45.

[15] O’CONNOR, Padre John. Father Brown on Chesterton. The Bowering Press Plymouth, 1937,  p. 113.

[16] TOQUÉDEC, Padre Joseph de. Um Novo Olhar Sobre G. K. Chesterton. Casa Pedro Editorial, 2022, p. 16.

[17] DENIS, Yves. G. K. Chesterton: Paradoxe et Catholicisme. Les Belles Lettres, 1974, p. 21.

[18] O’CONNOR, Padre John. Father Brown on Chesterton. The Bowering Press Plymouth, 1937, p.139

[19] GUÉRANGER, Dom Prosper. O Sentido Católico da História. Castela Editorial, 2020, p. 65.

[20] AHLQUIST, Dale. The Apostle of Common Sense.

[21] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Ecclesiae, 2018, p. 86.

[22] CHESTERTON, G. K. Hereges. Ecclesiae, 2014,  p. 111.

[23] VIRGINIA S. N. D., Irmã Marie. Chesterton’s Evangel. Benziger Brothers, 1937, p. 5.

[24] CHESTERTON, G. K. Appreciations and Criticisms of the Works of Charles Dickens.

[25] Illustrated London News, 30 de outubro de 1920.

[26] CHESTERTON, G. K. Hereges. Ecclesiae, 2014, p. 111.

[27] CHESTERTON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Ecclesiae, 2015, p. 80.

[28] O’CONNOR, Padre John. Father Brown on Chesterton. The Bowering Press Plymouth, 1937, p. 138.

[29] Ibidem.

[30] VIRGINIA S. N. D., Irmã Marie. Chesterton’s Evangel. Benziger Brothers, 1937, p. 9-10.

[31] BOUCHET, Rubén Caldéron. El Conservadorismo Anglosajón. Vórtice, 2014,  p. 26-27.

[32] Ibdem.

[33] G. K,’s Weekly, 28 de fevereiro de 1928.

[34]ROUSSEL, Padre Augustin. Liberalismo e Catolicismo. Castela Editorial, 2020, p. 201.

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