Correndo com o Diabo – Do Inferno do Ódio ao Poço de Misericórdia, Por Joseph Pearce

 

Joseph Pearce é o autor de muitos livros, incluindo biografias de Chesterton, Belloc, Tolkien e Alexander Solzhenitsyn. Ele é escritor residente do colégio Ave Maria College in Ypsilanti, Michigan.

“Um sonoro ateísta não pode ser tão cuidadoso com os livros que ele lê.” Assim disse C. S. Lewis (1898-1963) em sua apologética autobiografia, “Surpreendido pela Alegria”. Essas palavras continuam ressoando através dos anos que me separam da amargura do meu passado. O que é verdade para o ateu também o é para o racista, que é o que eu era. Um inferno de ódio consumiu minha juventude. Eventualmente eu me deparei com o brilho do dia Cristão, mas, olhando para trás ao longo do caminho, eu pude ver em minha mente as velas literárias que iluminavam a estrada. Há dezenas de velas trazendo o nome de G. K. Chesterton (1874-1936), cujas obras OrtodoxiaO Homem Eterno, O Poço e os Charcos, Um Esboço de Sanidade reluzem com um brilho particular. Quase a mesma quantidade de velas carregam o nome do grande amigo de Chesterton, Hilaire Belloc (1870-1953), e muitas outras carregam o nome de John Henry Newman (1801-1890). E, é claro, existem as tremeluzentes presenças de Lewis e J. R. R. Tolkien (1892-1973). Essas e outras incontáveis luzes no caminho que eu trilhei.

Juventude Perigosa

Eu cresci em um bairro relativamente pobre no leste de Londres quando a imigração em larga escala estava causando enormes mudanças demográficas. O influxo do grande número de indianos e paquistaneses estava a ponto de literalmente mudar a face da Inglaterra, escurecendo o caráter e aumentando a complexidade da vida inglesa. Talvez inevitavelmente, a chegada desses imigrantes causou um grande ressentimento entre a população indígena. Tensões raciais eram altas, e a violência entre jovens brancos e asiáticos estava se tornando corriqueira. E foi nessa atmosfera altamente carregada que eu emergi em minha adolescência raivosa. Aos quinze anos, eu entrei para a Frente Nacional, uma força emergente na política britânica que exigia a repatriação compulsória de todos os imigrantes não brancos. Como um político ativista, eu descobri que minha vida girava em torno de manifestações de rua, muitas das quais se tornavam violentas. Eu enchia minha cabeça e inflamava o meu coração com a ideologia racista e filosofia elitista.

E foi nessa época que eu fiz o que eu considero ser o meu pacto com Fausto – não que eu tivesse ouvido falar de Fausto nem, como agnóstico, tivesse nenhuma crença particular no Diabo. Todavia, recordo-me de ter feito um desejo consciente de que eu daria tudo se eu pudesse trabalhar em tempo integral para a Frente Nacional. Meu desejo foi atendido, e eu abandonei a minha educação para me dedicar de todo coração a me tornar um “revolucionário racial” em tempo integral. Eu nunca olhei para trás. Aos dezesseis anos, tornei-me editor do Bulldog, o jornal da Frente Nacional Jovem e, três anos depois, tornei-me o editor do Nacionalismo Hoje, um jornal ideológico da “fronte superior”. Aos dezoito eu tornei-me o membro mais jovem do corpo diretivo do partido. Quer eu acreditasse nele ou não, o Diabo foi certamente diligente em atender ao meu pedido.

Além do racismo, a esfera de minha amargura incluía o desdém pelo Catolicismo Romano, em parte por causa dos terroristas do Exército da República da Irlanda que eram católicos e em parte porque eu havia absorvido o preconceito anticatólico de muitos ingleses de que o Catolicismo era uma religião “estrangeira”. Tal preconceito está enraizado na alma nacional, remontando ao anticatolicismo de Henrique VIII e sua Reforma Inglesa, de Elizabete e a Armada Espanhola, de Tiago I e a Conspiração da Pólvora, e de Guilherme III e da então chamada Revolução “Gloriosa”. Eu sabia o suficiente da história da Inglaterra – ou pelo menos o suficiente acerca da preconceituosa visão Protestante que eu abracei em minha ignorância – ao ver o Catolicismo como um inimigo da nação que, como um nacionalista racial, que eu adotei com um fervor quase religioso.

Este era o contexto dos “meus problemas” na Irlanda do Norte em que meu anticatolicismo revelava toda sua feiura. A campanha de bombardeios do Exército Republicano Irlandês (IRA – Irish Republican Army em inglês) estava no auge durante a década de 70, e o meu ódio aos Terroristas Republicanos me levou ao envolvimento na política volátil de Ulster. Eu me juntei à Ordem de Orange, uma sociedade secreta pseudo-maçônica cujo único propósito é opor-se ao “papado”. Tecnicamente, embora fossem permitidos somente protestantes unirem-se à Ordem de Orange, qualquer crença real em Deus não parecia ser necessária. Como Protestante agnóstico, fui autorizado a me aliar; um amigo meu, ateu declarado, também foi aceito sem escrúpulos. Em última análise, a única qualificação não era o amor a Cristo, mas o ódio à Igreja (Católica).

Em outubro de 1978, com apenas dezessete anos, eu voei para Derry, na Irlanda do Norte para ajudar a organização de uma marcha da Frente Nacional. As tensões eram altas na cidade, e ao fim do dia explodiram manifestações entre os manifestantes Protestantes e a polícia. Durante boa parte da noite até a madrugada, bombas de gasolina foram atiradas contra a polícia, casas católicas foram atacadas, e lojas de donos católicos foram saqueadas e destruídas. Eu havia experimentado a violência política nas ruas da Inglaterra, mas nada parecido com a escala de ódio e de violência que eu presenciei na Irlanda do Norte.

Com meu apetite aguçado, eu me envolvi ainda mais com a política de Ulster, forjando alianças políticas e amizades com os líderes de grupos paramilitares protestantes, a Força Voluntária de Ulster e com a Associação de Defesa de Ulster. Durante uma reunião secreta com o conselho do Exército da Força Voluntária de Ulster (UVF – Ulster Volunteer Force em inglês), foi sugerido que eu usasse as minhas conexões com grupos extremistas de outras partes do mundo, para abrir canais para o contrabando de armas. Em outra ocasião uma “unidade de serviço ativo” da Força Voluntária – ou seja, uma célula terrorista – ofereceu os seus “serviços” para mim, assegurando-me de sua total disposição em assassinar quaisquer “alvos” que eu porventura quisesse “eliminar” e expressaram sua ansiedade para me mostrar seu arsenal de armas como uma marca de sua boa-fé. Eu declinei de sua oferta o mais educadamente possível – afinal não se deve ofender “amigos” como esses! Eram tempos perigosos. Dentro de alguns anos, o Exército Republicano Irlandês havia assassinado dois amigos meus na Irlanda do Norte.

Período na Cadeia

Na Inglaterra, a violência continuou a irromper nas manifestações da Frente Nacional. Fora de uma reunião eleitoral em uma área indiana de Londres em 1979, na qual eu era um dos oradores, seguiu-se um tumulto, e um manifestante foi morto. Alguns anos depois um amigo meu, um homem idoso, foi assassinado em outra eleição, embora naquela ocasião eu não estivesse presente. Previsivelmente, talvez, era só uma questão de tempo até que minha política extremista me colocasse em conflito com a lei. Em 1982, como editor da Bulldog, fui condenado pela Lei de Relações Raciais por publicar materiais “susceptíveis a incitar o ódio racial”. A sentença foi de seis meses de prisão. O julgamento ganhou manchetes em âmbito nacional com o resultado de que eu passei grande parte de minha sentença em isolamento e em confinamento na solitária. As autoridades da prisão estavam receosas de que a minha presença pudesse provocar problema entre os presidiários negros e brancos.

Ironicamente, um dos outros prisioneiros da ala de segurança máxima era um simpatizante do Exército Republicano Irlandês (IRA) que havia sido preso por destruir um retrato da Princesa Diana com uma faca. Tanto ele quanto eu nos víamos como presos políticos, e não como meros criminosos comuns, tal como os assassinos cumprindo penas de prisão perpétua, que constituíam a maioria dos outros presos da ala de segurança máxima. Impenitente, eu continuei a editar o Bulldog após minha soltura e fui devidamente acusado outra vez por ofensas pela Lei de Relações Raciais. Em outra ocasião, eu fui sentenciado a doze meses de prisão. Desta maneira, eu passei o meu vigésimo primeiro e o meu vigésimo quinto aniversários atrás das grades.

Durante a primeira de minhas sentenças, Auberon Waugh, um bem conhecido escritor e filho do grande Romancista Católico Evelyn Waugh, referiu-se a mim como um “jovem infeliz”. O quão certo ele estava! Eu era infeliz e infeliz sobre a rocha da minha própria dureza de coração. Anos depois, fui solicitado pelo padre que estava me instruindo na Fé Católica a escrever um ensaio sobre minha conversão, eu comecei com as primeiras linhas do famoso hino de louvor do pastor anglicano John Newton (1725-1807) Amazing Grace “[…] Que salvou um infeliz como eu”. Ainda hoje, quando forçado a olhar francamente para a escuridão do meu passado, eu fico atônito como verdadeiramente essa graça admirável de alguma maneira fez brotar raízes no deserto de minha alma.  Como eu fui libertado da prisão de minhas convicções pecaminosas? Como eu fui trazido da porta trancada de minha cela para os braços abertos da Mãe Igreja?

As Sementes Plantadas

Olhando para trás, eu percebo que as sementes de minha futura conversão foram plantadas já no ano de 1980 quando eu tinha dezenove anos. Em que solo árido elas foram plantadas! Naquela época eu estava no auge – ou nas profundezas – do meu fanatismo político e estava cedendo aos piores excessos de meus preconceitos anticatólicos nas águas sujas do protestantismo de Ulster. Poucos estariam tão distantes do portão de São Pedro quanto eu. As sementes estavam contidas em meu desejo genuíno de buscar uma alternativa política e econômica aos Pecados do Comunismo e ao cinismo do Consumismo. Durante os confrontos nas ruas com meus oponentes marxistas, eu fiquei indignado com sua sugestão de que, como um anticomunista, eu era obrigatoriamente um defensor do Capitalismo. Eu me recusava a acreditar que a única alternativa a Mamon (o “deus” do dinheiro) fosse Karl Marx (1818-1883). Eu estava convencido de que o Comunismo era uma pista falsa e de que era possível haver uma sociedade socialmente justa sem o Socialismo. Sabendo de minha busca para descobrir tal alternativa, alguém me sugeriu que eu lesse mais sobre as ideias do Distributismo de Belloc e Chesterton.

Nesta conjuntura, ouvem-se novamente os ecos da crítica de Lewis de que “um sonoro ateísta não pode ser tão cuidadoso com os livros que ele lê” – até mesmo porque o livro ao qual Lewis está se referindo de modo específico é O Homem Eterno de Chesterton. Este foi o livro que precipitou Lewis em seus primeiros passos provisórios rumo à sua conversão. Ao menos nisso, eu posso reivindicar um paralelo entre C. S. Lewis e eu. Para mim, como para ele, um livro de Chesterton nos levaria à conversão. No meu caso, o livro que estava destinado a ter uma influência profunda era um livro menos conhecido de Chesterton. O amigo que sugeriu que eu estudasse as ideias do Distributismo me informou que eu deveria comprar Um Esboço de Sanidade, mas também que eu deveria ler um inestimável ensaio intitulado “Reflexões sobre uma Maçã Podre”, que pode ser encontrado em uma coleção de seus ensaios intitulada de O Profundo e os Rasos. Eu comprei esses dois livros e fiquei na expectativa de ler o volume completo de ensaios. Imagine a minha surpresa e consternação ao descobrir que o livro era, em sua maior parte, uma defesa da Fé Católica contra vários ataques modernos a ela. E imagine a minha confusão quando eu descobri que eu não podia criticar a lógica de Chesterton. A sagacidade e a sabedoria de Chesterton desvelaram o meu presunçoso preconceito contra a Igreja Católica. A partir daquele momento, eu comecei a descobrir como ela era na realidade e não como era alegada por seus inimigos. Eu iniciei a jornada através do rumor de que ela era a Prostituta da Babilônia até a compreensão de que ela era de fato a Esposa de Cristo.

O Caminho Católico

Estava destinada a ser uma longa jornada. Eu estava perdido na floresta escura de Dante Alighieri (1265-1321), tão profundamente perdido que eu permaneci perigosamente perto do Inferno. É uma longa e árdua subida de lá até o sopé do Monte Purgatório (citado em A Divina Comédia). Mas eu estava em boa companhia. Se Dante tinha Virgílio (poeta romano clássico), eu tinha Chesterton. Ele me acompanharia fielmente em cada centímetro do caminho, sempre presente nas páginas de seus livros. Eu comecei a devorar tudo sobre Chesterton em que pude colocar minhas mãos, consumindo suas palavras com um deleite voraz. Através de Chesterton eu tomei conhecimento de Belloc, depois Lewis, e também Newman. Durante minha segunda sentença de prisão eu li pela primeira vez O Senhor dos Anéis e, pensei que eu não entenderia toda a profundidade mística do Catolicismo do mito de Tolkien, eu estava ciente de sua bondade, sua moral objetiva, e o bem da virtude que ele traçou. E é claro que eu estava ciente do que Tolkien compartilhava com Chesterton, Belloc e Newman. Por que a maioria de meus escritores favoritos eram católicos?

Foi durante a segunda sentença de prisão que eu comecei a me considerar como católico. Quando, como é o procedimento padrão, no início de minha sentença eu fui perguntado pelas autoridades da prisão sobre minha religião, eu anunciei que era a católica. Claro que eu ainda não era, ao menos não tecnicamente – mas esta foi a minha primeira afirmação de fé, até para mim mesmo. Outro marco durante a segunda sentença de prisão foram meus primeiros esforços desajeitados na oração. Eu não estou consciente de ter rezado antes da minha chegada à prisão de Wormwood Scrubs em dezembro de 1985, pelo menos não se alguém desconsiderar as orações de um menino-papagaio para um Deus desconhecido e inesperado muitos anos antes durante os monótonos serviços escolares. Agora, na desolação de minha cela, eu tateei os meus dedos nas contas de um rosário que alguém havia me enviado. Eu não fazia ideia de como rezar. Eu não sabia a Ave-Maria ou o Glória ao Pai, e não conseguia me lembrar da Oração do Senhor (o Pai-Nosso). Contudo, eu improvisava do meu jeito de conta em conta pronunciando orações de minha própria autoria, suplicando do fundo das profundezas de minha lamentável situação de fé, esperança e amor que minha mente e coração desejavam. Foi um começo pequeno, mas significante.

Minha soltura da prisão em 1986 marcou o começo do fim de minha vida como extremista político. Cada vez mais desiludido, eu me libertei da organização que tinha sido minha vida e a minha razão de viver por mais de uma década. Aos quinze anos de idade, eu tinha o desejo de dar minha vida pela causa; agora, aos meus vinte e poucos anos, eu só queria dar minha vida para Cristo. Se o Diabo tivesse aceitado meu desejo anterior e o tivesse concedido de maneira infernal, Cristo pegaria o meu desejo recém-descoberto e o concederia de modo purgativo. Havendo gastado a década de 80 em uma queda de braços espiritual entre o inferno do ódio contra mim mesmo e o bem do Amor prometido e derramado por Cristo, eu finalmente “voltei para casa” para o amoroso abraço da Santa Madre Igreja na festividade de São José em 1989. Hoje, catorze anos depois, eu ainda me encontro admirado pela Graça que pôde salvar um infeliz como eu.

Tradução de Rodrigo de Jesus Santana.

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