– Vocês gostam do JK. Quero ver quando vocês conhecerem o G. K. – disse-nos um dia, no pátio do Aspirantado Salesiano de Carpina – PE, o nosso Assistente José Edelzuito Soares, a meados dos anos 50 do século findo, tempo em que Juscelino Kubitschek embalava o sonho de Brasília na alma dos brasileiros.
Ao adolescente que, hoje, na adolescência da velhice, sublinha aquela lembrança com a tinta da gratidão e a marca da saudade, a provocação acendeu-lhe a chispa da pergunta:
– E quem é G. K.?
Era o que o Mestre esperava para a lição extratime:
– Quem foi… Já vai para trinta anos que ele morreu. G. K. Chesterton. Mas você está certo. No caso, o verbo é pra ser usado mesmo no presente: quem é. Antes de tudo, porque é difícil a gente imaginar um gigante morto. Depois, porque ele foi um dos grandes gênios da literatura inglesa. Chesterton tinha mais de dois metros de altura e era gordíssimo. Há até aquela anedota…
E Seu Edelzuito garantiu-se de nossa extra-atenção:
– Um dia, Chesterton encontrou Bernard Shaw, a quem não via desde algum tempo. Os dois escritores eram amigos, afinadíssimos no humor e rápidos como navalha em mão de malandro, embora opostos em quase tudo: Shaw era irlandês, socialista, agnóstico e (isso é o que interessa aqui) muito magro, magérrimo. E Chesterton foi logo dizendo: “Shaw, meu caro, quem vê você, vai pensar que na Inglaterra se passa fome”. E Shaw, no mesmo repente: “E quem vê você, vai dizer que você é a causa disso”.
Risos, risos. Reconcentrados os colegas, eu aprendi, entre meus 14 e 15 anos (eram tempos, lugares e costumes, aqueles, em que éramos forçados a ficar adultos muito cedo), que, além de Sherlock Holmes, houve na Inglaterra um detetive interessantíssimo: um padre – um padre-detetive, já pensaram? – em tudo e por tudo diferente daquele que dizia “elementar, meu caro Watson”. Para ele, ao contrário do que pensava o cerebrino investigador de Baker Street, tudo na vida era tão elementar, que nada na vida era elementar como se pensa. Voltava a vibrar a primitiva voz da tradição empírica britânica, desinibindo-se do silêncio que lhe impôs o negativismo cético-laicista de fins do século XVII, para reivindicar, pela cepa de sua ancestralidade medieval (Robert de Grosseteste, Roger Bacon, Duns Scotus, Guilherme de Ockham), que o common sense é cristão, antes de tudo, porque o cristianismo é, antes de tudo, common sense. Já não dizia Tertuliano que a alma humana é naturalmente cristã?
Claro que a simplicidade lógica dessa conclusão, eu só fui capaz de compreender alguns anos mais tarde, nas aulas de Filosofia. Mas foi em conversa informal com um professor do ginásio que, pela primeira vez, ouvi falar de um livro de Chesterton: A sabedoria do Padre Brown. (Anos se passaram, no entanto, até que eu me encontrasse com aquele “feioso padre de Cristo”, guarda-chuva no braço, “homenzinho curiosamente simpático”, “rosto arredondado e sem expressão”, cuja série de aventuras só cheguei a ler na idade madura, em sua língua original).
O que não demorou a cair-me sob os olhos, pouco depois da epifania chestertoniana aqui referida, foram duas obras fundamentais: O homem que era Quinta-Feira, do próprio Chesterton, e outra sobre ele: Três alqueires e uma vaca, de um autor que certa esquerda católica tornou, depois, nome impronunciável no Brasil: Gustavo Corção.
Ignoro a coincidência que me fez chegar àqueles livros. Creio devê-los a Geová Sobreira, meu colega de turma, manobrista no contrabando de textos que fugiam ao rigoroso expurgo do seminário. Assim penso porque, entre nós, ganhou fama, desde então, a jocosa reprimenda que outro colega passou ao Geová, ao surpreendê-lo com o livro do Corção. Enxergando o título de viés, ele o rebatizou para Três vaqueiros e uma vaca.
De O homem que era Quinta-Feira, ainda conservo as páginas amareladas do caderno em que ficaram rabiscados os traços iniciais do plano que eu então fazia, de transformar-lhe a narrativa em uma peça de teatro. O ano: 1959. (Deus que me perdoe! – e quem nunca exorbitou de pretensões, quando adolescente, me atire a primeira pedra).
A menção a esses livros impróprios à idade de seu leitor deixa, por si, claro e escancarado que eu não assimilava bem o que lia, mas é certo que nós só devemos ler os livros que não entendemos por inteiro. Um livro inteligível da primeira à última linha não causa surpresa, e o próprio leitor é que deveria escrevê-lo.
Eu ainda não tinha cabeça para acompanhar os comentários de Corção sobre o pensamento de Chesterton, mas isso não me incomodava. Também, ainda hoje, indago, sem entender, o que há nas entrelinhas alegóricas de O homem que era Quinta-Feira, lido, relido, anotado ao longo do tempo. O que importa é que não serei grato o bastante a um mestre e a um companheiro de estudos, por me terem chamado a atenção sobre a obra do grande G. K., ainda em meus anos de Bildung. É conhecida a frase de Jorge Luís Borges, lembrando que a literatura é uma das formas de felicidade e que talvez nenhum escritor lhe tenha trazido tantas horas felizes quanto Chesterton. Sendo isso verdade para o gênio argentino, imagine-se a que infinitas proporções ascendia a felicidade de um menino afoito empanturrando-se da extraordinária luminosidade do gênio inglês. Serei apenas um a mais em expressar, com reverencial humildade, absoluto fascínio pela leitura de Chesterton.
Já na faculdade, encontrei-me outra vez com Chesterton, através das condensadas biografias de Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Assis, que me fizeram desconfiar, em definitivo, de quem contempla a Idade Média com os olhos vendados para depois dizer que aquele foi o milênio de trevas da História humana. Guardo o elogio de étienne Gilson – não por acaso, um dos mais respeitados tomistas do século XX – sobre o primeiro desses livros: “Estudei Santo Tomás a vida inteira e nunca teria sido capaz de escrever um livro como esse.” São Francisco de Assis me convenceu de que, se a Igreja tivesse levado a sério a sua refundação a partir do exemplo do Poverello, teríamos evitado o desastre de Lutero. Em nossos dias, a reedição do livrinho facilitaria desvendarmos a proposta de “retorno às bases” que o Papa Francisco pretende oferecer ao catolicismo pós-moderno. Ambos os Franciscos concordariam, sem dúvida, com o desabafo chestertoniano: “O cristianismo não falhou: ele não foi ainda experimentado.”
Mas eu já estou citando Ortodoxia, que tomei como vade-mécum em muitas ocasiões. Quis fazê-lo preceder, segundo a cronologia, de Hereges, e prosseguir com O que há de errado com o mundo e O homem eterno – títulos conhecidos desde a leitura de Gustavo Corção –, até chegar à Autobiografia. Chesterton é para ser lido continuadamente, por puro prazer. Mas a sua vasta bibliografia andou longe desta periferia do mundo, na proporção inversa ao que agora paga de preço ao fetiche do mercado, enriquecendo sociedades que o vendem como camisetas da moda, sem escrúpulos, até, por lhe distorcerem o pensamento.
Seja como for, não será fácil ler, numa existência só, o corpus da literatura chestertoniana, imenso como o corpo físico do escritor poliédrico, que, sendo autodidata, foi poeta, ensaísta, narrador, jornalista, crítico literário, filósofo, teólogo, biógrafo, desenhista, ativista político, apologista e, herdeiro da Era Vitoriana, profetizou os grandes conflitos que levariam à Segunda Guerra Mundial. Contemporâneo de escritores de proa (Oscar Wilde, H. G. Wells, Sir Arthur Conan Doyle, James Joyce, Thomas Hardy, W. B. Yeats, Virgínia Woolf, Rudyard Kipling, Bernard Shaw, para lembrar só nomes da literatura inglesa), de todos se distinguiu, escrevendo por modos como não se esperaria, surpreendendo os/as leitores/as a todo o momento com paradoxos cintilantes e frases lapidares, expondo sem hesitação – mas sem sectarismo – as suas convicções mais profundas, contrárias, no geral, ao que era vigente entre seus contemporâneos. Polemista incansável, não escolhia com quem expor-se em duelo, sem, no entanto, depor jamais as armas da alegria espontânea, do humor inesgotável. Não foi Kafka que disse, de Chesterton, “ele é tão alegre que se poderia quase ficar tentado a acreditar que ele de fato encontrou a Deus”?
Por essas qualidades, até as suas obras de apologista permanecem como arte literária. Mestre da ironia, ao mesmo tempo que do mais franciscano respeito ao outro (“o lado secreto da nobreza”), não descia jamais ao golpe grosseiro que, mesmo entre católicos, foi a marca de cruzados rancorosos, como Giovanni Papini, na Itália, e, entre nós, Carlos de Laet, Padre Leonel Franca e até seu “discípulo” Gustavo Corção. O cristianismo de Chesterton é amplo, radiante, generoso, epítome perfeita da beleza fecunda do mundo, do amor compreensivo, da visão universalista das coisas. Cristianismo, digo eu, sem necessidade de proclamar-se católico. Cristianismo. Só. Não é preciso ler muitas páginas de Chesterton, para nos convencermos de que o protestantismo não foi apenas um erro. Acima de tudo, foi um ato de estrondosa soberba e uma tolice de criança amuada. Não por outra razão, o protestantismo é triste: se a cruz sem Cristo é só tristeza (e não podemos esconder este lado esconso de certo catolicismo torto), o Cristo sem cruz é a rasa, ainda que disfarçada, negação da alegria, um paganismo rústico, medroso, que não tardará a confundir o peso do hedonismo com a leveza do prazer que liberta. O protestantismo é um neomaniqueísmo alarmado e alargado até às fronteiras do capitalismo.
Por isso também, a expressão literária mais consentânea com o cristianismo é o barroco – eis o que está dito, sem ser dito, na percepção e na prática chestertoniana da literatura. A expressão direta, em linha reta, parece correta, mas não é: é o meio breve para dizer o caminho longo, o caminho do mundo em seu desdobrar-se das mãos do Criador. E, ao contrário do que se imagina, cansa a vista, como a sovinice cansa o coração. O universo é curvo. Deus é redondo. Infinito transbordamento.
Tomemos uma passagem qualquer de Chesterton, para fazermos um exemplo duplo de nossa dupla afirmação: “Os dois grupos que lidam com os assuntos humanos” – diz ele, referindo-se a São Francisco de Assis – “são apenas o grupo que vê a vida negra em contraste com a branca e o grupo que vê a branca em contraste com a negra, o grupo que se mortifica e se obscurece com o sacrifício porque o fundo da cena está tomado pela chama de uma misericórdia universal e o grupo que se engrinalda com flores e se ilumina com tochas nupciais porque estas o sustentam contra uma cortina de noite imprevisível. Os foliões estão velhos, e os monges permanecem jovens. Houve monges que foram perdulários de felicidade, enquanto nós somos dela avarentos.” (Doze tipos, Topbooks, 1993, p. 77).
Notemos, contudo, que o barroquismo de Chesterton é a linguagem clara de quem, embriagado com a grandeza da Criação, não encontra palavras para louvar a Deus e, por não encontrá-las, repete-as e as repete, como o louco que perdeu tudo, menos a razão. Longe está da retórica desbordante que inflaciona o discurso para justificar a submissão aos príncipes, antes que à onipotência divina. É uma confissão de humildade, da insuficiência humana: nós nunca seremos suficientemente cristãos, porque nosso coração e nossa mente nunca estarão abertos para abarcar amorosamente todas as dimensões da existência.
Ora, o universalismo cristão (que jamais encara o mundo e os homens previamente separados em dois grupos, bons e maus, opressores e oprimidos, incluídos e excluídos, etc.), esse universalismo é um plano de reconquista do paraíso perdido, de retomada da inocência, pelo qual esperamos trazer de volta a sabedoria e a imortalidade, quer dizer, a plenitude humana tal como antes de mutilada pelo desacerto original.
Tem-se por óbvio, em consequência, que o verdadeiro cristão – o cristão verdadeiramente universalista – é o melhor candidato à apreciação da literatura e o melhor crítico literário, pois estará apto, mais que qualquer outro, a apanhar a palavra sub specie aeternitatis. A literatura é a documentação do esforço humano por edificar o permanente sobre o chão do provisório, segundo uma maquete que se sabe perdida, mas que se busca pela palavra e pela palavra se sabe possível refazer. É o sentido alegórico que se esconde em toda obra literária. “Um grande homem de letras ou qualquer grande artista” – diz Chesterton num dos ensaios deste livro – “é simbólico sem que o saiba. As coisas que ele descreve são tipos porque são verdades. Pode ser que alguma vez Shakespeare tenha dito para si mesmo, ou que não o tenha dito, que Ricardo II era um símbolo filosófico; mas toda boa crítica deve necessariamente vê-lo assim. Pode ser que seja uma questão sensata a de se um artista deve ser alegórico. Entre homens sãos não pode haver dúvida alguma de que o crítico deve ser alegórico.” (“O Romance de Charles Dickens”).
Esta, por todas as evidências, a compreensão chestertoniana da crítica em geral, e da crítica literária em especial: menos como hermenêutica textual ou geometria do estilo, e mais como intuição e identificação do humano, liberdade analítica, educação do bom senso, afirmação do bom gosto. Em suas palavras, noutra passagem deste livro: “Eu sou uma daquelas personalidades humildes para as quais a principal coisa no estilo está em fazer uma afirmação; e em geral, […] contar uma história. O estilo tira a sua forma mais viva e, portanto, mais apropriada do interior de si.” E mais: “Literatura não é nada mais que linguagem; é apenas um raro e assombroso milagre pelo qual um homem diz o que realmente ele quer dizer.” (“Sobre Robert Louis Stevenson”).
Cristianismo, visão universal. Literatura, expressão universal dessa visão. Afinal, foi por Sua Palavra que Deus redimiu o homem, e é pela palavra do homem que se completa a redenção do mundo.
Que os/as leitores/as se façam repletos da felicidade desta leitura de Chesterton.
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