O Camponês que se tornou Papa, por G. K. Chesterton

Papa São Pio X


The Illustrated London News, 29 de agosto de 1914

Entre as muitas expressões verdadeiras e tocantes a respeito da tragédia do Vaticano[1], a maioria comentou sobre o fato de que o falecido Papa era um camponês de nascimento. Ainda assim, creio que quase ninguém rastreou essa verdade até sua conclusão mais interessante e até tremenda. Pois a verdade é que o antigo papado é praticamente a única autoridade na Europa moderna em que isso poderia ter acontecido. É o trono mais antigo, incomensuravelmente mais antigo da Europa; e é o único a que um camponês pode ascender. Nos estados semiasiáticos, há assaltos e usurpações, indubitavelmente. Mas estas são de bandidos, não de camponeses: falo do camponês puro que ascende por puro mérito. Esta é a única monarquia eletiva real que resta no mundo; e qualquer camponês ainda pode ser eleito nela.

Há algo terrível e misterioso na brilhante cegueira dos iluminados. Tem telescópios e não veem; tem telefones e não ouvem: alguma paralisia secreta da mente ou nó dos nervos os impede de ter consciência de qualquer coisa que seja palpável e presente. Disseram-me em um clube de debates que as guerras agora eram praticamente impossíveis e ultrapassadas, enquanto os jornaleiros gritavam o ultimato da Áustria à Sérvia. Ouso dizer que eles ainda estão a repetir isso naquele clube de debates. E se eu dissesse a eles que a era científica moderna foi, além e acima de todas as outras eras, a Era do Militarismo, eles chamariam esse simples fato de paradoxo. E como foi com a antiga instituição das armas, assim é hoje com a linhagem da antiga instituição do poder. É muito mais forte hoje do que nunca. É infinitamente mais forte do que deveria ser. A hereditariedade moderna é um direito hereditário antigo. Costumava haver muitos déspotas eleitos no mundo: hoje existem muito poucos. Onde quer que o poder seja pessoal, é acidental. O mundo moderno acredita na oportunidade poética e esportiva da primogenitura. Para provar isso, não precisamos fazer mais do que aludir às circunstâncias terrenas ou sobrenaturais em que nos encontramos neste momento.

Quem quer que esteja certo ou errado, é bastante certo que os dois Impérios Centrais agora em guerra são feitos de muitos sangues e histórias. E é certo que o que mantém cada confederação unida não é uma constituição pública, mas simplesmente uma família privada. O imperador austríaco está tentando vingar seu herdeiro; o imperador alemão está tentando reviver seu avô. Ao menos, o sentimento em ambos os casos não é um sentimento constitucional: é antes o sentimento de que o sangue é mais espesso do que a tinta. Eu mesmo acho que os Habsburgos foram mais sábios do que os Hohenzollerns, a compreender mais da natureza humana e das raízes de tal despotismo doméstico. Pois a Casa da Prússia aponta para sua boa sorte; e se uma vez perdesse a sorte, poderia perder toda a lealdade. Mas a Casa da Áustria aponta antes para sua má sorte; e apela, como fez Maria Teresa, a homens de muitas raças estranhas para se reunirem em torno de algo simples: um bebê, uma mulher ou um velho. Eu não deveria me perguntar se as calamidades do Império Austríaco por si só o mantiveram unido. Em todo caso, temos a prova da intensa modernidade do mero direito hereditário. Eu não deveria me perguntar se as calamidades do Império Austríaco por si só o mantiveram unido. Em todo caso, temos a prova da intensa modernidade do mero direito hereditário. As tribos e clãs que não puderam ser mantidos juntos por nenhum estado são mantidos juntos por um sobrenome. A família é maior do que a nação.

Mas, em comparação com o caso do falecido Papa, o caso dos governantes republicanos e “representativos” é igualmente forte. Não me recordo de que um verdadeiro camponês tenha sido recentemente presidente na França. Tenho certeza de que um verdadeiro trabalhador não foi primeiro-ministro na Inglaterra. Deve ser confessado, temo, que a mais longa e mais lenta de todas essas escadas de ascensão é a escada da campanha eleitoral. Existe, é claro, uma pessoa muito respeitável e altamente conservadora chamada de Membro Trabalhista. Mas quão longe ele está do trabalhador médio! E como ele ainda está longe do homem comum da bancada! Na América, suponho (pelo menos era assim em minha juventude) que existia algo como “Da Cabana à Casa Branca”. Quando menino, pensava que a mudança de residência era uma deplorável deterioração no sentido do pitoresco. Mas, para o bem ou para o mal, existe algum registro britânico “De Marceneiro à Ministro”? Algum político moderno, por mais republicano que seja, acha natural imitar Cincinato? Ele, em algum momento casual, põe de lado o paludamento[2] e volta ao arado? Ao longo da vida, ele tem a linguagem, a masculinidade e a inconfundível composição da classe de onde veio? Mesmo nas altas e heroicas repúblicas, como as da França e da Suíça, pode-se dizer que o governante é realmente o homem simples no poder?

Agora, todas as evidências, tanto de inimigos quanto de amigos, atestam que isso era realmente verdade para o grande sacerdote que terminou por devolver a Deus o poder mais tremendo do mundo. Quem mais o admirava admitia a simplicidade e a sanidade de um camponês. Quem mais murmurava contra ele queixava-se da obstinação e da relutância de um camponês. Mas, por isso mesmo, ficou claro que a mais antiga instituição representativa da Europa está funcionando: quando todas as novas se quebraram. Ainda é possível obter o tipo forte, paciente e bem-humorado que mantém a alegria e a caridade vivas entre milhões, vivas e supremas em uma instituição oficial. Mas acho que confundiria os parlamentares, os sufragistas, os representacionistas proporcionais e todos os outros representantes de nossa complexa máquina me dizer onde mais isso foi possível: exceto naquele lugar agora vazio.

Como já foi assinalado, com sutil poder e toda a delicadeza apropriada, em inúmeros jornais liberais e de mente aberta, o grande e bom sacerdote agora morto tinha todos os preconceitos de um camponês. Ele tinha o preconceito de que a palavra mística “Sim” deveria ser distinguida da expressão igualmente insondável “Não”. Muitos viajantes que perambulavam por pairagens camponesas encontraram traços dessa crença. O Sr. W. Yeats[3], em seu mais belo poema, “A Ilha no Lago de Innisfree” responde exatamente ao instinto do camponês de exatidão: pela verde aritmética dos campos ordenados. “Lá plantarei nove renques de feijão”. Muitos dos poetas meramente aristocráticos, como Shelley ou Goethe, poderiam ter dito dezenove fileiras de feijão, ou noventa; e Byron, quando seu sangue subisse à cabeça, teria dito novecentos. Mas o Sr. Yeats vem de uma terra de camponeses: ele sabe quantos feijões equivalem a nove. Esta crença obstinada, de que duas vezes dois são quatro e três vezes três são nove, sem dúvida possuía a inteligência do grande camponês quando ele discutiu com toda a Intelligentsia da Europa. Eles foram os mais finos intelectos da época. Eles disseram isso; e eles deveriam saber. O Papa nunca pretendeu ter um intelecto extraordinário; mas ele professou estar certo: e ele estava.

Todos os ateus honestos, todos os calvinistas honestos, todos os homens honestos que pretendem algo, ou acreditam ou negam qualquer coisa, terão motivos para agradecer às suas estrelas (um hábito pagão) pelo camponês naquele lugar elevado. Ele matou a enorme heresia de que duas cabeças pensam melhor do que uma, quando elas crescem no mesmo pescoço. Ele matou a ideia pragmática de comer um bolo e tê-lo. Ele deixou que as pessoas concordassem com seu credo ou discordassem dele; mas não deixou que o representassem incorretamente. Era exatamente o que teria dito qualquer camponês de qualquer uma de nossas colinas e planícies. Mas havia algo mais nele que não estaria no camponês comum. Por todo esse tempo ele chorou pelas nossas lágrimas, ele partiu seu coração pelo nosso derramamento de sangue.

Traduzido por João Medeiros.


[1] Chesterton refere-se ao falecimento do Papa Pio X (1833-1914), falecido nove dias antes do artigo, a 20 de agosto de 1914. Nascido Giuseppe Melchiorre Sarto, o Papa Pio X reinava do sólio petrino desde 1903. Foi canonizado pelo Papa Pio XII em 29 de maio de 1954, sendo o primeiro papa canonizado desde Pio V. O Papa era conhecido por suas condenações à heresia modernista.

[2] Paludamento, do latim ‘Paludamentum’, era um manto ou capa utilizado pelo alto oficialato militar de Roma e pelo imperador romano; ficava distintivamente preso ao ombro direito e simbolizava a posição de autoridade daquele que o utilizava.

[3] William Butler Yeats (1865-1939), muitas vezes chamado por W. B. Yeats, foi um literato irlandês, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1923, e um dos principais nomes da literatura do século XX.

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