The Illustrated London News, 16 de agosto de 1919
Em um jornal revolucionário americano ao qual já me referi antes nesta coluna, encontrei um artigo, e especialmente uma sentença, que revela muito do que hoje se “revolução”. Pois a verdade é que não estamos sofrendo com a revolta das coisas novas, mas sim das coisas particularmente velhas – que agora ficam aparentes porque estão maduras o suficiente para serem velhas. O artigo tratava da condição da religião na Rússia sob os bolcheviques[1]. E a frase, que pareceu ao seu autor tão nova e vital a ponto de exigir itálico, consistia nas palavras “a religião é um assunto privado”. Há várias coisas a serem observadas sobre essa nova máxima.
A primeira é que é obviamente falsa, exceto no sentido de que é verdadeira demais para ser útil, ou tão óbvia que é inútil. Ou é um lugar-comum perfeitamente sem sentido ou uma falsidade bastante palpável. É verdade que uma convicção religiosa, naturalmente, deve ser principalmente privada – isto é, que deve estar primeiro na alma antes de ser aplicada à sociedade. É algo igualmente verdadeiro para uma convicção política ou para uma convicção econômica, ou para qualquer outra convicção. Se é isso que ele quer dizer ao chamar a religião de assunto privado, não existe assunto público. Todavia, se ele quer dizer que a convicção mantida na alma não pode ser aplicada à sociedade, ele quer dizer um absurdo manifesto e delirante.
Em outras palavras, se ele quer dizer que a religião de um homem não pode ter nenhum efeito sobre sua cidadania ou sobre a comunidade da qual ele é cidadão, ele evita ser banal sendo absurdo. Um homem pode ser um bandido ou um mórmon; a religião de um homem pode envolver algo como sacrifício humano ou uma objeção de consciência ao combate. Em sociedades mais civilizadas que possuem um matiz teocrático, há obviamente toda a diferença do mundo entre um estado puritano e um estado pontifício. É uma questão de mero senso comum que, em tais coisas, o maior inclui o menor. O cosmos, do qual nós concebemos as criaturas, deve incluir a cidade da qual nos concebemos cidadãos. A noção de um homem sobre o mundo em que ele caminha deve ter um efeito sobre a terra em que ele caminha.
Mas o ponto que eu gostaria de enfatizar nesta coluna sobre tal máxima não é apenas de que é estúpida, mas que também é obsoleta. Esse credo bolchevique não é apenas uma hipocrisia, mas uma convenção bastante antiga. O American Socialist o imprime em itálico, quase como se fosse um paradoxo. Mas é exatamente o tipo de coisa que aqueles a quem o jornal chamaria de bourgeoisie[2] teriam usado cem anos atrás como um lugar-comum. É o tipo de coisa que Necker[3] poderia ter dito de uma maneira cansada para Bailly[4], que teria sido inteligente o suficiente para ficar entediado com isso. O tipo mais estúpido de comerciante vitoriano, que leu Macaulay[5] mas não conseguiu ir tão longe e ler Mill[6], poderia ter dito que, afinal de contas, não fazia diferença se o Chanceler do Tesouro era um wesleyano ou um metodista calvinista. Mesmo assim, isso não significava que não importava verdadeiramente para o Estado se o estadista era verdadeiramente um calvinista. O que realmente significava, naquela época, que não importava para o calvinista se ele era realmente um calvinista. As almas dos homens são como os corpos dos homens, e seus credos só se misturam quando eles estão mortos. Mas a máxima pode ser tomada como um pequeno texto para uma verdade muito maior: a verdade de que tais coisas não estão mais na moda porque são novas, pelo contrário, estão na moda porque são velhas. Elas são velhas o suficiente para que sejam familiares aos políticos e príncipes mercadores, e à outras pessoas que nunca pensam por suas próprias ideias. É assim que elas se tornam tão atuais que podem ser transmitidas entre as multidões e movimentos de algo como a Revolução Russa.
Isso é verdade, por exemplo, em relação a grande parte de nossa própria disputa industrial, seja qual for o lado que possamos apoiar ou qual for a visão que possamos ter dela. Minha própria opinião envolveria uma digressão bastante longa, pois me considero entusiasticamente simpatizante do que os trabalhadores desejam, como algo muitas vezes estranhamente diferente do que eles exigem. Mas, como curiosidade imparcial, é bastante curioso notar que as novas paixões são expressas por fórmulas comparativamente antigas. Há muito a ser dito a favor e contra a nacionalização – a assunção pelo Estado de certas formas de grande riqueza. Porém, a única coisa que certamente não pode ser dita sobre isso é que é a última moda ou o novo movimento do momento. O socialismo de estado não é agora uma coisa nova, mas uma coisa velha – e, para muitos de seus antigos admiradores, uma coisa antiquada.
Se os reformadores estivessem apenas preocupados com o dernier cri[7], com a última novidade em pensamento econômico, eles não usariam os termos de “socialismo de estado”, mas “socialismo de guildas” em sua liberdade mais descentralizada, como é tão finamente pregado pelo Sr. Penty[8]; ou, talvez, do sindicalismo futurista vagamente baseado na filosofia do Sr. Bergson[9]; ou usariam termos que eu, por exemplo, considero mais úteis: os termos da descoberta do Estado Servil pelo Sr. Belloc[10]; ou ainda, até mesmo a sua alternativa do Estado Distributivista. Mas essas ideias ainda são muito novas para serem revigorantes – pelo menos para aquelas massas de homens que necessariamente vivem pela tradição.
Um exemplo ainda mais forte é a tradição dos Congressos Trabalhistas de aprovar uma votação quase cerimonial contra o protecionismo. Mais uma vez, eu não estou discutindo aqui a questão em si mesma. Há um caso muito bom e claro para o livre-comércio, mas não é especialmente próximo à política trabalhista, e é, no mínimo, alheio ao socialismo. Muitos socialistas lúcidos, do Sr. Blatchford[11] ao Sr. Bernard Shaw[12], foram contra isso. Mas esses outros socialistas são a favor do livre-comércio simplesmente porque é ainda mais antigo que o protecionismo e, portanto, ainda mais sólido que o socialismo. Se alguma coisa no mundo pode ser chamada de distintivo dos burgueses, esta coisa é o livre comércio. Mas o Partido Trabalhista realmente gosta de ser tão estabelecido, tão tradicional e tão respeitável quanto a bourgeoisie. O velho socialismo de estado, o velho livre-comércio, ambos têm agora idade suficiente para se orgulhar de sua história – como nações e igrejas se orgulham de sua história. Um homem pode se lembrar de seu pai dizendo: “Eu não viverei para ver isso. Mas você verá a boa causa triunfar”. Leva uma ou duas gerações para que uma ideia floresça dessa maneira. Mas pode ser uma segunda adolescência ou apenas uma segunda infância. Se a ideia for verdadeira, como Rousseau[13] e a sua igualdade do homem, estará sempre a renovar sua juventude. Se for falsa, como Marx e a sua visão materialista da história, então é exatamente quando ela caminhar sobre a terra e eclipsar o sol que poderemos saber que está cambaleando, e que uma palavra a matará.
Tradução de João Medeiros.
[1] Em fevereiro de 1917, a autocrática monarquia dos czares Romanov foi desconstituída pelas vias armadas com o começo da chamada Revolução Russa. Com a destituição da monarquia, foi decretado o fim do Império Russo e a formação da República Russa, que teve vida curta: desencadeada a série de revoluções com clímax na Revolução de Outubro, o antigo império foi submerso numa Guerra Civil que terminou com a vitória dos Vermelhos bolcheviques sobre os Brancos mencheviques.
[2] N.T.: Burguesia.
[3] Jacques Necker (1732-1804) foi um político e economista suíço que serviu por três vezes em cargos distintos ao rei Luís XVI da França, mais celebremente como seu ministro das finanças.
[4] Jean Sylvain Bailly (1736-1793) foi um astrônomo, matemático, político e maçom francês, sendo um dos líderes da Revolução Francesa (1789) em um primeiro momento. Foi guilhotinado em praça pública em Campo de Marte, local parisiense simbolicamente utilizado para a execução daqueles considerados traidores da Revolução, durante o Reinado de Terror.
[5] Thomas Babington Macaulay (1800-1859), 1º Barão de Macaulay, foi um poeta, historiador e político britânico. Lorde Macaulay serviu como Secretário para a Guerra e como Tesoureiro Geral do gabinete ministerial britânico.
[6] John Stuart Mill (1806-1873) foi um filósofo, economista político e político inglês. Stuart Mill era um liberal e foi um dos pensadores mais influentes do liberalismo clássico; foi também um proponente vanguardista dos “direitos das mulheres”, como o sufrágio feminino, e do feminismo.
[7] N.T.: A moda mais recente.
[8] Arthur Joseph Penty (1875-1937) foi um arquiteto e escritor inglês. Originalmente, Penty era socialista e membro da Sociedade Fabiana, e escrevia sobre “socialismo de guildas” e, por certo tempo, sobre o distributismo; também foi influenciador do pensamento dito socialista cristão.
[9] Henri-Louis Bergson (1859-1941) foi um filósofo francês que influenciou particularmente a chamada filosofia continental. Fortemente influenciado pelo panteísmo de Spinoza, sua filosofia era subjetivista e entendia que a experiência imediata e intuitiva das coisas, sem a abstração racional do pensamento realista que constitui ciência, é que apreendia verdadeiramente a realidade; adquiriu a simpatia de católicos modernistas e teve suas obras condenadas e banidas pela Igreja Católica. Foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1927 por seu livro A Evolução Criadora.
[10] Joseph Hilaire Pierre René Belloc (1870-1953) foi um historiador, poeta, orador, político e escritor franco-inglês. Ferrenhamente católico, a sua fé exerceu uma forte influência sobre suas obras; e serviu como um dos raros membros publicamente católicos do Parlamento Britânico. Foi um grande amigo de Chesterton e teve influência em sua conversão à Fé Católica; eram tão próximos que George Bernard Shaw, que frequentemente entrava em debate com ambos, unificava-os pelo cognome “Chesterbelloc”.
[11] Robert Peel Glanville Blatchford (1851-1943) foi um jornalista e escritor britânico famoso por seu ativismo em prol do socialismo. Blatchford era ateu convicto e, ao contrário de seus confrades socialistas, era também um raro opositor da eugenia e do darwinismo social.
[12] George Bernard Shaw (1856-1950) foi um dramaturgo, crítico, polemista e ativista político irlandês. Sua obra que perpassou meio século influenciou boa parte da cultura e política ocidental contemporânea; e marcou toda uma geração da dramaturgia por peças como Homem e Super-Homem (1902), Santa Joana (1923), que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1925, e Pigmalião (1913), que seria adaptada ao cinema em 1938 e lhe renderia o Prêmio Oscar de Melhor Roteiro daquele mesmo ano. Bernard Shaw era um socialista e o mais conhecido membro da Sociedade Fabiana, e dentre suas opiniões figuravam a promoção da eugenia, a oposição à vacinação e à reforma do alfabeto inglês, bem como por sua destacada oposição à religião organizada.
[13] Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um filósofo, escritor e compositor genebrino cujas ideias, particularmente em sua filosofia política, influenciaram gravemente o Iluminismo, a Revolução Americana, Revolução Francesa e toda a política, economia e educação modernas.
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