Por que sou Ortodoxo e não um Conservador, por G. K. Chesterton


The Illustrated London News, 06 de julho de 1935

        Muitos anos atrás, eu escrevi um livro sobre ortodoxia. Não proponho discutir aqui as controvérsias de que tratei nele. Mas a palavra enquanto palavra, enquanto um termo conveniente do dicionário da língua inglesa para ser usado como uma ferramenta na oficina de palavras em inglês, não deixa de ter um certo interesse próprio. A princípio, eu a utilizei porque era a única palavra que eu conseguia pensar para algo que às vezes é confundido com tradição, e às vezes é confundido com conservadorismo. “Ortodoxia” é a palavra para algo que pode ser antigo, e talvez seja oficial; mas não é verdadeiro por ser antigo, e certamente não é por ser oficial, mas apenas verdadeiro por ser verdadeiro. O mártir cristão primitivo pensava que era ortodoxo, embora obviamente a antiguidade e a oficialidade fossem do paganismo. Tal pessoa ainda se achará ortodoxa, mesmo que o paganismo varra o mundo uma vez mais, mas agora afirmando que é novo e revolucionário. Mas o ortodoxo não é intrinsecamente intolerante com coisas que são novas e revolucionárias, pois é muito ciente de que ele próprio já fora novo e revolucionário. Mas a confusão comum entre ortodoxia e oficialismo distorce todas as formas de discussões que nada têm a ver com a religião. Mesmo quando existe uma verdade na tradição, ainda devemos distingui-las como a tradição e a verdade. E devemos, sobretudo, atentar-nos sobre a mera preservação das tradições que não considera a fundo se tais tradições são verdadeiras. Não tenho tanta certeza de que sou um tradicionalista, mas estou completamente certo de que não sou um conservador. Pois o conservador conserva os resultados de todos os motins e rebeliões. Ou melhor, o conservador encoraja os motins e as rebeliões pela promessa tácita de conservar todos os seus resultados. No mesmo ato de resistir à mudança, o conservador é forçado a seguir todas as mudanças e todas as chances de guerra. Efetivamente, o conservador é um revolucionário, pois nunca poderá ser um contrarrevolucionário. O que quer que tenha sido resolvido na última resolução, ele deve considerar como solucionado; mesmo quando, pelo teste de suas próprias ideias de verdade, a última resolução tenha sido, em si mesma, um erro. A política inglesa está cheia dessa comédia perpétua e um tanto absurda. Enquanto os cavaleiros se sacrificaram pelo rei, em protesto contra o roubo das suas prerrogativas pelo Parlamento, seus descendentes cavalheirescos devem preservar reverentemente as prerrogativas reais roubadas pelo Parlamento. Quando tais pessoas cavalheirescas, por sua vez, tentaram defender as tradições gerais da pequena nobreza contra demandas inteiramente novas e grosseiras dos capitalistas e homens do comércio, as forças mais grosseiras obtiveram sucesso, e o seu sucesso, por sua vez, tornou-se sagrado. Deste modo, devido à falha dos pais em derrotar o mercantilismo, os filhos foram convocados para defender o capitalismo.

        Pois eu lamento em dizer que, durante toda a última parte do século XIX, quase não havia outro dever do conservadorismo, exceto a defesa do capitalismo. Aliás, a traição começou ainda no início do século XIX. Pois embora muitos tories não oficiais conservassem algo do cavalheirismo dos jacobitas[1], os tories[2] oficiais, como Pitt[3] e Peel[4], já eram tão comerciais quanto os radicais[5] de Manchester. E quando um verdadeiro tradicionalista como Cobbett[6] quis retomar as tradições verdadeiras de uma Inglaterra mais antiga, eles o insultaram e o prenderam como um radical sedicioso. Ainda assim, como eu disse, nem mesmo a tradição em si mesma é um teste verdadeiro o suficiente para nos fazer dispensar a ideia de ortodoxia; se for somente a ortodoxia política ou social. Existem tradições de fábulas assim como tradições de fatos; e Cobbett, ainda que apelasse para uma lealdade, também apelava contra uma lenda. Mas o ponto é o paradoxo da mera conservação; uma vez que ao meramente resistir à todas as mudanças, meramente justificará todas as mudanças.

        Somente podemos perceber muito claramente por uma espécie de parábola. Suponhamos que uma estátua está no fórum de uma cidade como o santuário de uma civilização; uma estátua de alguém supostamente sagrado naquele culto ou cultura; digamos que um bom rei dos tempos antigos, como São Venceslau, o bom rei da Boêmia de quem ainda ouvimos no Natal[7]. Depois de algum tempo, os boêmios não se contentam com sua boemia, bebendo vinho ou gritando canções de bebida ou cânticos em homenagem ao bom rei. Eles se transformam de boêmios em bolcheviques e negam que qualquer rei tenha sido bom. Ou talvez os vegetarianos se levantem furiosos para o abate, ou os bebedores de água tenham sede de sangue. Eles diriam que as palavras condenatórias registradas sobre ele, “traga-me carne e traga-me vinho”, são suficientes para provar que o Bom Rei Venceslau era, na verdade, o Mau Rei Venceslau. De qualquer forma, por uma razão qualquer, uma nova facção de fanáticos se revolta e corre contra a estátua; possivelmente arrancando seu nariz, como tantos puritanos honestos fizeram com as estátuas medievais nas grandes catedrais góticas. Não há nada particularmente estranho no processo até agora. É da natureza dos fanáticos correr e bater nas coisas, mas também é da natureza das estátuas permanecer paradas e se deixar bater. A sequência muito peculiar encontra-se na atitude dos senadores, dos sábios, dos sábios anciões que deveriam representar o elemento tradicional e imutável nesta cidade boêmia.

        A extraordinária história desses velhos senhores foi esta: eles começaram por defender o nariz do rei, porém terminaram a admirar o rei por não ter nariz. O curioso é que, terminada a revolução, estes sábios proferiram uma série de palestras e discursos públicos explicando que a ausência de nariz é a marca de uma nação de pessoas pragmáticas e viris; que o nariz é atualmente um órgão praticamente inútil ao homem, similar ao apêndice; que a evolução urge aos homens mais desenvolvidos para que arranquem seus narizes; e que a ausência de tal característica na estátua real é a mais positiva e preciosa das instituições políticas da Boêmia. Na curiosa atmosfera social daquele país em particular, realmente não há limites para a extensão em que essa negação possa se tornar uma moda. Belas moças aumentariam sua beleza tendo seus narizes achatados, como já agora aumentam com suas sobrancelhas arrancadas; pois nada parece melhorar tanto o rosto humano quanto a remoção de grandes porções dele por alguma operação puramente destrutiva. Então todos os principais artistas e críticos de arte explicariam que representar o nariz na arte é “fotográfico”, e que aquela grande escultura não pretende ser representativa; ou (alternativa ou possivelmente ao mesmo tempo) os mestres e professores de história começariam a trabalhar para provar que o Rei Venceslau, como Sir William Davenant[8], nunca teve nariz, pois não há registro de seus espirros naquela celebrada ocasião em que a neve era tão profunda e a geada tão cruel. Uma fantasia social extremamente fascinante poderia ser escrita sobre a maneira como a crítica erudita, as fofocas da moda feminina e o jornalismo popular, combinaram-se em um coro de aprovação daquele novo recurso – ou melhor, da remoção de um recurso. Mas o interesse intelectual está no fato de que toda essa variedade de virtuosismos só existiria para desculpar um ato de vandalismo. A atitude vândala logo se tornaria oficial e, caso durasse o suficiente, se tornaria tradicional. Se dizemos que nunca se tornaria ortodoxa, queremos dizer que nunca corresponderia à verdade original da matéria – ou mesmo ao projeto original de seu artista. Porque seria encobrir a verdade com invenções convenientes e engenhosas que poderiam reconciliar o público com o vandalismo, mas nunca poderiam provar verdadeiramente que a coisa foi projetada para ser vandalizada. A ortodoxia é aquele princípio primário, ou razão correta nas coisas, pelo qual elas podem ser julgadas independentemente das novas modas ou dos velhos preconceitos. Há uma retidão intelectual intrínseca que pode ser julgada em todos os tempos em seus próprios termos; e, no passado, ortodoxia foi o termo que achei adequado para nomear isso. Mas naqueles dias, a única heresia realmente perseguida chamava-se de ortodoxia.

   Tradução por João Medeiros.



[1] O jacobitismo foi um movimento político britânico de cunho legitimista e restauracionista nascido após a Revolução Gloriosa de 1688. Os jacobitas propunham a restauração da Casa Stuart no trono britânico. Seu nome parte do rei Jaime Stuart, o último Stuart a reinar na Inglaterra (como Jaime II) e na Escócia (como Jaime VII); em sua versão latina, Jacobus. O movimento jacobita entrou em declínio em meados do século XVIII, e teve como último pretendente Carlos Stuart, duque de Albany, que reivindicava o trono como Carlos III do Reino Unido. Após a morte de Carlos, os jacobitas voltaram os esforços para seu irmão Henrique Stuart, cardeal da Igreja Católica, que era também duque de Iorque, mas que não tinha interesse na causa jacobita, tampouco o apoio da Igreja pois, enquanto sacerdote, havia renunciado a glória do mundo.

[2] Os tories foram uma facção política e posteriormente um partido político britânico fundado em 1678 e dissolvido em 1834. Precederam o Partido Conservador. Apesar de dissolvidos naquela primeira parte do século XIX, o nome tory tornou-se comum para se referir ao partido conservador da situação.

[3] William Pitt, o Novo (1759-1806) foi um político britânico e líder conservador que serviu como primeiro-ministro por quase duas décadas. Pitt é tido como o principal responsável pela transição sem violência do Reino Unido à nova ordem fundada pelas revoluções americana (1775) e francesa (1789).

[4] Sir Robert Peel (1788-1850) foi um político britânico e líder conservador que serviu como primeiro-ministro por dois mandatos. Originalmente membro dos tories, Peel foi um dos fundadores do Partido Conservador moderno nascido da falência de seu primeiro partido.

[5] Os radicais foram uma facção política que precedeu os whigs, o Partido Liberal e o moderno Partido Trabalhista. Suas ideias eram um emaranhado que compreendia desde católicos a, futuramente, anticlericalistas inspirados nos jacobinos.

[6] William Cobbett (1763-1835) foi um polemista e político britânico membro do Partido Radical. Cobbett defendia a reforma agrária, a reversão dos cercamentos, a emancipação dos católicos, impostos baixos e o fim das sinecuras (hoje conhecida como cabide de emprego); além de ser contrário aos corretores de bolsa de valores, que forjariam o sistema financeiro internacional, e ao padrão-ouro.

[7] Good King Wenceslas é um popular cântico natalino inglês que conta a jornada de São Venceslau, o rei da Boêmia que enfrentou um inverno rigoroso para dar esmolas aos camponeses mais necessitados.

[8] Sir William Davenant (1606-1668) foi um poeta e dramaturgo inglês. Com cerca de 14 anos, Davenant contraiu sífilis e a doença venérea (DST) lhe desfigurou gravemente o nariz.

3 Comentários

  1. Excelente artigo! Sugiro que alterem a formatação em vista de tornar a leitura mais agradável. Parabéns pela publicação

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    1. Muito obrigado, amigo. De que modo a formatação poderia melhorar?

      Abraço.

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  2. Espaçamento maior entre as linhas

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