A teologia dos presentes de Natal, por G. K. Chesterton


Contemporary Review, janeiro de 1910

Este artigo, que até agora nunca havia sido reimpresso, foi publicado pela primeira vez na Contemporary Review em janeiro de 1910. Ao ler o artigo, vale a pena lembrar que ele é apenas um dos muitos escritos de Chesterton que tratam do tema do Natal. O significado da Encarnação é, verdadeiramente, um dos grandes temas unificadores que atravessam toda a sua obra.

        Aqueles teólogos modernos que insistem que o Cristianismo não está em doutrinas, mas em espírito, geralmente não percebem que eles estão se expondo a um teste mais abrupto e severo do que a própria doutrina.

Algumas preliminares legais, pelo menos, são necessárias antes que um homem possa ser queimado por suas opiniões; mas sem quaisquer preliminares, um homem pode ser baleado por causa de seu tom de voz. O cristão à moda antiga pode ser ainda mais rápido em seu julgamento de que certas novas visões são antipáticas do que em seu julgamento de que elas não são ortodoxas. É muito mais fácil detectar e não gostar do cheiro de uma heresia do que rastreá-la até seus ingredientes químicos. E quando o novo teólogo passa por cima da história e da metafísica exata e simplesmente diz: “Despojado de suas formalidades, isso é cristianismo”, ele mente mais abertamente do que o velho teólogo à resposta puramente personalista de um homem qualquer: “Se isso é o cristianismo, leve-o embora”. Pode-se considerar a pólvora como algo composto de carvão, enxofre e salitre; ou pode-se considerar a pólvora (como faz o intelecto mais direto de uma senhora solteirona) como uma coisa que termina com um estrondo. Mas se o filósofo da inovação se vangloria de não trazer sal, enxofre ou carvão, esperamos pelo menos um estrondo, e um estrondo alto. Se é possível para ele explodir o Parlamento com leite, óleo de salada e serragem fina, deixem-no em paz. Mas o Parlamento deve ser explodido; isso, todos concordamos, é o essencial. Agora o cristianismo, ou o que quer que seja, é uma explosão. Quer consista ou não na Queda, na Encarnação, na Ressurreição, certamente consiste em trovão, prodígio e fogo. A menos que seja sensacional, simplesmente não faz sentido. A menos que o Evangelho soe como uma arma disparando, ele não foi anunciado de forma alguma. E se as novas teologias soam como vapor escapando lentamente de uma chaleira furada, então mesmo o ouvido destreinado do leigo comum (que não conhece nem química nem teologia) poderá detectar a diferença entre este som e aquele de uma explosão. É inútil para tais reformadores dizer que eles vão, não pela letra, mas pelo espírito. Pois eles se opõem ainda mais claramente ao espírito do que à letra.

        Tomemos um exemplo de muitos deste princípio em operação: o caso dos presentes de Natal. Faz pouco tempo desde que vi uma declaração da Sra. Eddy[1] sobre este assunto, na qual ela disse que não dava presentes de maneira grosseira, sensual e terrestre, mas ficava sentada e pensava sobre a Verdade e a Pureza até que todos os seus amigos parecessem muito melhores para isso. Ora, não digo que esse plano seja supersticioso ou impossível, e sem dúvida tem um encanto econômico. Eu digo que é anticristão no mesmo sentido sólido e prosaico de que tocar uma música ao contrário não é musical, ou que dizer “né” é agramatical. Não sei se existe algum texto bíblico ou um concílio da Igreja que condene a teoria da Sra. Eddy sobre os presentes de Natal; mas o cristianismo o condena, assim como um soldado condena a fuga do dever. As duas atitudes são antagônicas não apenas em sua teologia, não apenas em seu pensamento, mas em seu estado de alma antes mesmo de se começar a pensar. A ideia de incorporar a boa vontade – isto é, de colocá-la em um corpo – é a ideia grandiosa e primordial da Encarnação. Um dom de Deus que pode ser visto e tocado é o ponto principal da epigrama do credo. O próprio Cristo foi um presente de Natal. A nota dos presentes materiais de Natal é tocada nos primeiros movimentos dos Reis Magos e da Estrela, antes mesmo de Jesus nascer. Os Reis Magos chegaram a Belém trazendo ouro e incenso e mirra. Se eles tivessem trazido Verdade, Pureza e Amor, não haveria arte cristã; tampouco existiria uma civilização cristã.

        Muitos sermões devem ter sido pregados sobre esses três presentes; mas há um aspecto deles que dificilmente recebeu a devida atenção. É estranho que os nossos céticos europeus, enquanto tomam emprestado dos filósofos orientais boa parte de seu determinismo e de seu desespero, estejam a zombar perpetuamente do único elemento oriental que o cristianismo avidamente incorporou, o único elemento oriental que é realmente simples e encantador. Refiro-me ao amor oriental pelas cores alegres e uma excitação infantil pelo luxo. Cético após cético tem chamado a Nova Jerusalém, descrita por São João no Apocalipse, de joalheria vulgar. Cético após cético tem denunciado os ritos da Igreja como desfiles da púrpura sensual e do ouro espalhafatoso. Mas nesta seleção, de fato, a Igreja foi mais sábia do que a Europa ou a Ásia. Ela viu que o apetite oriental pela escarlate, prata, ouro e o verde era em si inocente e ardente, embora desperdiçado por aquelas civilizações inferiores devido aos mimos da ociosidade e da tirania. Ela viu que a simplicidade estoica do romano continha um perigo de rigidez e orgulho, embora isso fosse aliado à igualdade e ao espírito público da mais alta civilização então existente. A Igreja pegou todo o ouro labiríntico e cores rastejantes que adornavam tantos poemas eróticos e romances cruéis no Oriente, e acendeu aquelas chamas heterogêneas para iluminar a gigantesca humildade e as grandiosas intensidades da inocência. Ela tirou as cores das costas da serpente; mas ela deixou a serpente.

Os povos europeus, em geral, seguiram nisso o exemplo do instinto cristão e da arte cristã. Nada é mais saudável em nossa tradição popular do que o fato de considerarmos o Oriente uma massa de formas e cores singulares, e não um sistema filosófico rival. Embora seja verdadeiramente um templo de antigas cosmologias, nós o tratamos como um grande bazar – isto é, como uma enorme loja de brinquedos. As pessoas reais se lembram do Oriente Médio não pelo profeta árabe, mas por “As Mil e Uma Noites da Arábia”. Constantinopla foi capturada por uma cultura sarracena pouco inferior, na época, à nossa. Entretanto, nós não nos preocupamos com a cultura turca, porém com os tapetes turcos. O Império Celestial[2] foi preenchido por eras com um agnosticismo irônico. Mas nós, europeus, não pedimos enigmas chineses, mas quebra-cabeças chineses. Consideramos o Oriente como uma grande Gamage[3]; e fazemos bem. Esta é a coisa mais calorosa e humana do Oriente, o que se chama a violência de sua coloração e a vulgaridade de suas gemas. O quão más são as outras coisas orientais, as rodas do destino mental e os desperdícios da dúvida mental, só o podemos saber pelos próprios céticos modernos, que nos dão a triste atitude oriental combinada com o triste hábito ocidental. Schopenhauer nos mostra o veneno da cobra sem o seu brilho, assim como a Igreja Primitiva nos mostrou o brilho sem o veneno. Foi o brilho que a Cristandade tirou do emaranhado das coisas orientais. O ouro corria como fogo em uma floresta ao redor de cada escritura e estatuto, e se agarrava à cabeça de cada rei e santo; mas todo seu corrimento veio de um pedaço de ouro que Melchior trazia na mão quando ele atravessou os desertos até Belém.

        Os outros dois dons são marcados ainda mais pela grande nota cristã – a nota do sensual e do material. Há até algo descaradamente carnal no apelo ao olfato no incenso e na mirra. O nariz não fica de fora do divino corpo humano. Um órgão que para a mente moderna parece tão cômico quanto a tromba de um elefante é familiarmente reconhecido em tais imagens orientais. Mas, para insistir pelo outro lado, tal luxo asiático só é admitido no mistério cristão para ser subordinado a uma simplicidade e sanidade superiores. O ouro é levado para um estábulo; os reis vão procurar um carpinteiro. Os sábios estão em marcha não para encontrar a sabedoria, mas sim uma forte e sagrada ignorância. Os sábios vieram do Oriente; mas eles dirigiram-se ao oeste para encontrar Deus.

        Além dessa qualidade corporal e encarnada que torna os presentes de Natal tão cristãos, há um outro elemento com efeito espiritual semelhante: refiro-me ao que se pode chamar de “particularismo”. Sobre isso, novamente, as novas teorias (das quais a ciência cristã é a maior e mais lúcida) dão uma nota surpreendentemente diferente e oposta. A teologia moderna nos dirá que o Menino de Belém é apenas uma abstração de todas as crianças; que a Mãe de Nazaré é um símbolo metafísico da maternidade. A verdade é que é apenas por ser a Natividade uma narrativa de uma mãe e filho solitários e literais, é que ela é universal. Se Belém não fosse particular, não seria popular. Da mesma forma, uma canção de amor para uma mulher desdenhosa pode ser tão penetrante e mortal que todos os homens a cantam de manhã e à noite, o camponês no arado e o príncipe na sela. Entretanto, todos parariam de cantar de repente se fosse dito a eles que a música não era sobre uma mulher, mas apenas sobre a mulher enquanto símbolo.

O Natal, mesmo em suas observâncias mais caseiras e até cômicas de meias e caixas, é permeado por essa ideia pessoal de um segredo entre Deus e o homem – um gorro divino que se ajusta especificamente à cabeça humana. O cosmos é concebido como uma agência postal central e celestial. O sistema postal é, de fato, vasto e rápido, mas as encomendas são todas endereçadas, seladas e invioladas. Uma caixa postal só é pública para que uma carta seja privada. Os presentes de Natal são um protesto permanente em favor da doação, distinta daquela mera partilha que as moralidades modernas oferecem como equivalente ou superior. O Natal representa este soberbo e sagrado paradoxo: de que é uma transação espiritual mais elevada para Tommy e Molly dar seis centavos um ao outro, do que seria se dividissem um xelim meio a meio. O Natal é algo melhor do que uma coisa para todos: é uma coisa para todo e cada um. E se alguém achar tais frases sem objetivo ou fantásticas, ou pensar que a distinção não existe exceto em um refinamento de palavras, o único teste é o que já indiquei – o teste permanente da população. Pegue uma centena de meninas de um internato e veja se elas não fazem distinção entre uma flor para cada uma e um jardim para todas.

Se, portanto, as novas escolas espirituais estiverem preocupadas em provar que possuem o espírito e o segredo da festa cristã, elas devem prová-lo. E provar não por afirmações abstratas, mas por coisas que têm um cheiro especial e inconfundível, por atingir um sabor pungente, por ser capaz de escrever uma canção de Natal, ou até mesmo por ser capaz de fazer uma torta de Natal.


Tradução por João Medeiros.


[1] Mary Baker Eddy (1821-1910) foi uma escritora e líder religiosa americana que fundou a Igreja de Cristo Cientista, popularmente conhecida como Igreja da Ciência Cristã, em 1879.

[2] Antigo nome utilizado para se referir aos impérios dinásticos da China.

[3] Loja de departamento originária de Londres, a Gamage foi fundada por Arthur Walter Gamage e teve quase cem anos de funcionamento antes de seu fechamento por uma fusão. A Gamage era particularmente famosa por seus departamentos de ferragens e de brinquedos, este último especialmente benquisto por crianças em tempos de Natal devido ao seu catálogo amplo e variado de brinquedos.

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