G. K. Chesterton: uma vocação para o mistério, por Rosa Clara Elena Nougué

 


Apresentação escrita originalmente para o volume A Inocência do Padre Brown, publicado pela Sociedade Chesterton Brasil

Do menino ao homem, ou o menino no homem

Uma viagem rumo à fé: um retorno

Chesterton e o gênero policial

Origem do Padre Brown

Originalidade do Padre Brown

Um epílogo

Enquanto houver mistério, haverá saúde.

G. K. C., ORTODOXIA

A vida é tão preciosa como enigmática; é um êxtase, pela razão mesma de que é uma aventura, e é uma aventura porque toda ela é uma oportunidade fugidia.

G. K. C., ORTODOXIA

O nome de Chesterton evoca a figura de um humorista e polemista na contramão de sua época; ou então uma simpática e enorme criatura dickensiana que levou sua joie de vivre a cada esquina e a cada taberna da velha e poética Londres do primeiro terço do Novecentos; ou ainda, enfim, a imagem de um escritor excêntrico que aproveitou cada minuto, qualquer ocasião – uma viagem de trem ou uma espera de ônibus – e qualquer mínimo pedaço de papel para escrever sobre todas as coisas. Um homem que escreveu páginas perpétuas sobre o que parecia não merecer palavra: a cor cinza, um pedaço de giz, uma caixa de correio, "o que há em meus bolsos", ou seja, sobre tremens trifles (enormes minúcias), porque "tinha o dom de iluminar o trivial com resplendores eternos", como disse Ronald Knox no panegírico de seus funerais. E tudo isso é verdade, conquanto parcial.

E é parcial sobretudo porque o nome de Chesterton evoca, além dessas e de muitas outras coisas, uma grande palavra: mistério. É o tom e o grande tema de sua vastíssima obra, incluídas suas melhores ficções, as histórias em que aparece o Padre Brown, tão indissociavelmente unido a Chesterton como D. Quixote a Cervantes. As narrativas que, neste A Inocência do Padre Brown, se oferecem ao leitor brasileiro são únicas no gênero policial e peças únicas da literatura. E seu protagonista, o modesto e afável Padre Brown, é também criação única: aparentemente frágil e insignificante, é por acaso que se converte em investigador, e possui aos olhos da polícia oficial uma ciência inaudita para descobrir o criminoso. Percorre Londres, a Grã-Bretanha e algo do mundo, lugares abertos ou secretos, hotéis aristocráticos ou recantos sórdidos, castelos arruinados e povoados perdidos, teatros, confeitarias, subúrbios; move-se silencioso e ignorado em qualquer lugar aonde vá, e penetra os abismos dos homens para oferecer uma solução inesperada e magistral. Mas isto, como verá o leitor, é apenas um ponto de partida, porque estes não são meros contos policiais: Chesterton, no mistério da trama, não deixa de escrever também outros mistérios.

E Chesterton, príncipe do senso comum, doutor do realismo, apologista da infância, cuja atividade pública nasceu em parte como resposta à angústia fim de século, opôs-se a qualquer versão do spleen (tédio), à tese da realidade como ilusão ou como mera matéria, à crença na desintegração final do eu no cosmos, filosofias essas intensamente debatidas nas sociedades e nos clubes ingleses de seu tempo. Ele escreveu porém uma obra perdurável, e hoje mais que nunca necessária; o mundo em que Chesterton viveu era muito semelhante ao nosso, e ele como que adivinhou o que deveria legar às gerações futuras. Chesterton, se se quiser, escreveu para hoje.

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Nasceu Gilbert Keith Chesterton em Kenginston (Londres), em 29 de maio de 1874, o segundo dos três filhos de Edward Chesterton e de Marie Louise Grosjean. O primeiro lar foi decisivo para o desenvolvimento artístico de Chesterton, especialmente pela figura do pai, o qual, conquanto por profissão corretor de imóveis, era por vocação um artista, artista "privado", um artesão de figuras para a imaginação; "era muito universal em seus gostos, amava muitas coisas antigas e tinha paixão pelas catedrais francesas e por toda a arquitetura gótica", dirá Chesterton na póstuma Autobiografia (1936). Dedicou seu talento aos filhos com diversas invenções suas, teatros de marionetes, livros ilustrados, iluminuras com motivos medievais; elementos que configurariam o singular universo chestertoniano e sua sensibilidade.

Chesterton fez seus estudos secundários no St. Paul's School de Hammermsmith. Ali obteve, em 1892, um prestigioso prêmio com um poema sobre São Francisco Xavier; este êxito inesperado, como lembra ele, o "tirou da atmosfera confortável e protetora da obscuridade e do fracasso". Durante aqueles anos de estudante, diz-nos, "a impressão principal e fundada que produzia nos professores e em muitos dos colegas era a de que estava dormindo". Apatia aparente: "a mente estava ocupada", do que resultou uma associação organizada com amigos (alguns dos quais, como Bentley, também se tornaram escritores) — o Junior Debater Club. O clube discutia textos literários e publicaria uma revista, Debater, na qual apareceram os primeiros poemas e críticas literárias de Chesterton, já de qualidade e de agudeza surpreendentes.

Em 1893 ingressa na Slade School de Londres para estudar artes plásticas: Chesterton parece postergar sua vocação literária, a qual porém ele retoma pouco depois, deixando inconclusos os estudos de pintura e desenvolvendo, de modo incansável, seu labor jornalístico. Escreve no Bookman, no Speaker, no jornal fundado por Dickens, o Daily News, entre outros. Sobre sua forma original de fazer jornalismo, diz-nos ele mesmo:

Escrevi num órgão não conformista como o Daily News acerca dos cafés franceses e das catedrais católicas, o que os entusiasmou porque até então não haviam ouvido falar de nada disso. Escrevi num órgão trabalhista como o Clarion e defendi a teologia medieval e todas aquelas coisas de que os leitores nunca haviam ouvido falar; e os leitores não se indignaram comigo.

Aos vinte anos escreve seu primeiro romance, de tema amoroso, inédito até muito pouco tempo atrás: Basil Howe. Mas o primeiro de seus livros então publicados data de 1900, uma curiosa obra híbrida, Greybeards at Play: uma série de ilustrações e de poemas em que já se delineiam algumas de suas qualidades – humor, inteligência fina, e essa sua admiração onipresente pela existência e pelo universo, no qual brinca, perambula e descobre com a mesma cômoda familiaridade com que perambulara pelos jardins da infância. É porém O Cavaleiro Indômito e Outros Poemas, também de 1900, sua primeira obra importante, acolhida calorosamente pela crítica: "Era minha iniciação na literatura e ainda sem ser homem de letras".

Nesse mesmo ano conhece Chesterton o escritor, político e jornalista católico Hilaire Belloc, "num café escuro e sujo" de um bairro londrino, e junto com ele se declara a favor dos bôeres na África do Sul, ou seja, contra o imperialismo britânico; defende o homem médio e torna-se porta-voz dos fracos (em The Eye Witness, jornal fundado pelo mesmo Belloc); e cria a doutrina socioeconômica do Distributismo, sistema para além do capitalismo e do socialismo. Tinha esse sistema algo de "medievalismo": nele se estabeleciam estruturas gremiais, cooperativas de produção e de serviços, pequenas associações, pequenas fazendas, e se fomentava o comércio menor, uma distribuição racional da terra e, acima de tudo, a proteção da instituição familiar. Todavia, embora tenha granjeado numeroso grupo de seguidores, a aplicação do sistema estava longe de ser possível – tinha algo de quixotesco para o mundo moderno.

A primeira de suas biografias, de 1903, é sobre o poeta vitoriano Robert Browning. Será o início de uma das facetas mais importantes de Chesterton: a de biógrafo. Entre suas biografias mais relevantes, podem citar-se a de Dickens (1906), a de São Francisco de Assis (1923), a de Stevenson (1927), e sua obra cume no gênero: Santo Tomás de Aquino (1933).

Influído em grande medida por estes escritores e por estes santos, enfrenta Chesterton a angústia existencial de seu tempo e a multidão de correntes filosóficas, científicas e estéticas que dominam a época: no campo da filosofia e da ciência, niilismo, pessimismo, subjetivismo, panteísmo, imanentismo, determinismo, darwinismo, etc.; no das artes, futurismo, dadaísmo, etc. O pensamento de Nietzsche e o de Schopenhauer, o ideal do super- homem e a ideia do homem imerso num mundo sem esperança, são alguns alvos para os quais apontam seus primeiros escritos e debates, com a finalidade de restituir ao homem seu sentido último e sua positiva presença no mundo. Como diz o mesmo Chesterton na Autobiografia:

Este modo de ver as coisas, com uma espécie de gratidão mística, estava naturalmente apoiado, de certo modo, naqueles poucos escritores da moda que não eram pessimistas; sobretudo em Walt Whitman, Browning e Stevenson; no "Deus deve alegrar-se de que se ame tanto seu mundo" de Browning, e no "A fé numa decência última das coisas" de Stevenson [...]. O que eu queria expressar, embora não soubesse fazê-lo, era o seguinte: nenhum homem sabe quão otimista é, ainda que se chame pessimista, porque não mediu realmente a gratidão de sua dívida com aquele que o criou e lhe permitiu ser algo. No fundo de nosso pensamento, existia uma chama súbita ou estalo de surpresa diante de nossa própria existência. O objetivo da vida artística e espiritual era trazer à superfície esta submersa aurora maravilhosa, de modo que um homem sentado numa cadeira pudesse compreender que estava vivo e era feliz.

Descreve também, humoristicamente, os anos em que frequentava os clubes ingleses onde se discutiam as ideias em voga: [...] uma espécie de teósofo me disse: "O bem e o mal, a verdade e a mentira, a loucura e a cordura são simples partes do mesmo movimento ascendente do mundo". Ocorreu-me responder: "Supondo que não haja diferença entre o bem e o mal, ou entre a verdade e a mentira, qual é a diferença entre ascendente e descendente?"

Em 1901 casa-se com Frances Blogg, que influi em sua consolidação literária e num conhecimento mais profundo do cristianismo, o que repercutirá em sua posterior conversão, em 1922, ao catolicismo.

No outono de 1909, os Chestertons afastam-se de Londres para estabelecer-se num tranquilo povoado vizinho que haviam conhecido por acaso numa viagem sem destino preciso: Beaconsfield. Londres, e mais exatamente a Fleet Street (a famosa avenida dos jornais mais importantes e em cujos bares se congregavam os escritores de então), perde Chesterton, mas é no escritório luminoso e sossegado da nova casa, Overrroads, que ele começa uma fecundíssima etapa criadora. Em conjunto, a mais brilhante de sua vida.

Chesterton, na casa dos trinta, é já um escritor sólido: já publicou pelo menos duas obras-primas, O Homem Que Foi Quinta-feira e Ortodoxia (ambos de 1908), exemplos não só de sua multifacetada atividade intelectual, mas também de sua vertiginosa capacidade criativa, pois entre as duas obras distam somente poucos dias. Além do mais, é conferencista e fervoroso conversador. Toda a sua obra possui a virtude da oralidade. Alguém disse, com razão, que sua obra parece uma amena e longa conversa com o leitor.

Torna-se Chesterton um jogral errante, viageiro – dá conferências nos Estados Unidos, em alguns países europeus e no Oriente Próximo –, e ao mesmo tempo, portas adentro, um "contemplativo", como acertadamente foi chamado.

Do menino ao homem, ou o menino no homem

Diz Chesterton na Autobiografia que, se os capítulos que descrevem a infância ocupam nela muitas páginas, como se "ele houvesse demorado um tempo incomensurável para nascer", é porque são necessários "ainda que tudo o mais seja absurdo". Não é casual que estes primeiros capítulos sejam os de maior mestria e qualidade poética; se já perto da morte Chesterton parece crescer ainda mais como escritor, se sua luz é já a luz intensa que a chama derrama antes de apagar-se, é na infância, porém, que se encontram as raízes de seu pensamento e de sua arte: a vocação para o mistério, a capacidade de maravilhar-se, o agudo senso de realismo - "o atributo da infância é a nitidez" – e a permanente humildade. "Posso assegurar ao leitor que [tudo isto tem] relação com as últimas conclusões deste livro."

O mundo tal como o menino Chesterton o percebe oferece não pouco material poético e filosófico ao homem Chesterton. Com efeito, um dos eixos de sua obra é o estranhamento ao modo da infância, ou seja, o apresentar como estranha – e nova – uma realidade já percebida. "Depois de ler Chesterton", disse o crítico P. Romeva, "já não podemos ver nada como antes. Ideias e juízos que estivemos repetindo como coisa evidente aparecem-nos necessitados de emenda. Nossa visão anterior de coisas e de fatos familiares parece-nos agora pobre e incompleta [...]. Tudo parece [...] mostrar-nos um rosto que não conhecíamos." Daí também seus célebres paradoxos e suas criações mais fantásticas: seu objetivo é a reapreciação e a reobservação da realidade. Há, neste sentido, uma figura ou símbolo central na obra de Chesterton, o qual se repete como Leitmotiv e tem que ver com a infância. Vemo-lo já em seus primeiros contos, como Nostalgia de Casa (1896), no qual um homem dá a volta ao mundo para reapreciar seu lar. Reaparece o símbolo, agora para explicar a trajetória do autor para a fé cristã, em Ortodoxia, onde Chesterton se compara ao marinheiro inglês que depois de navegar por todos os mares julgou chegar aos antípodas, à ilha mais estranha, e viu que era sua própria terra, da qual havia saído. Ressurge em Homem-vida (1912), uma espécie de autorretrato e uma alegoria de seu matrimônio: o protagonista e a esposa voltam a encontrar-se em diferentes lugares do mundo para renovar o primeiro encontro e voltar ao lar com "olhos novos". E também em O Homem Eterno (1925), porque "há duas maneiras de estar em casa: uma é permanecer nela; a outra é dar a volta ao mundo para retornar ao lugar de onde saímos": Chesterton utiliza aqui sua velha figura para fazer filosofia da história e escrever uma história do cristianismo, tornando-o doutrina desconhecida e estranha para que o leitor o veja pela primeira vez. E, por fim, volta na Autobiografia, onde o símbolo se aplica à totalidade de sua própria história: "A vida ainda é uma coisa estranha para mim, e como a um estrangeiro lhe dou as boas-vindas".

Uma viagem rumo à fé: um retorno

Chesterton converte-se efetivamente ao catolicismo em 1922, embora desde sempre já se manifestasse como católico. Como disse Hilaire Belloc, "a fé é o aspecto mais importante de sua obra", e de fato é difícil não encontrá-la até em seus primeiros textos. "Quase se pode afirmar que toda a sua obra não é mais que um processo de conversão: o voltar-se de todos os ângulos para certas verdades, sempre as mesmas, pressentidas, vislumbradas primeiro", escreveu ainda Romeva. Catolicismo inconsciente no princípio, fragmentário, formado amiúde de impressões ou de intuições: a visita a Notre-Dame em Paris, que deixou nele profunda marca; toda a arte cristã; as histórias do irmão Lobo, o vaivém de São Francisco Xavier; o Natal e o Presépio; a visão de um cardeal à passagem de uma procissão:

Surgia [...] uma espécie de fantasma envolto em chamas. Jamais a caixa de pinturas de um xelim haveria podido propagar semelhante conflagração carmesim, nem tais lagos cor de laca [...]. Surgiu com suas vestes fulgurantes, como uma grande nuvem colorida ao pôr do sol, e levantando sobre toda a gente os dedos frágeis e alongados num gesto de bênção. Então lhe olhei a face e me sobressaltou o contraste, pois seu rosto era pálido como um morto, da cor do marfim, e estava muito enrugado e envelhecido, feito todo ele de nervo exposto, osso e músculo, com os olhos afundados na sombra, conquanto não fosse feio, levando em cada ruga a ruína de uma grande beleza.

Nas páginas iniciais de Ortodoxia, onde condensa, pela primeira vez, sua visão de mundo, escreve:

Se a alguém interessar saber como as flores do campo ou as palavras lidas num ônibus, as vicissitudes da política ou os afãs da juventude confluíram em mim, sob determinada lei, para produzir a convicção da ortodoxia cristã, esse, acredito, lerá com gosto estas páginas.

Confessa depois que, para defender o cristianismo, lhe é indiferente começar "por uma abóbora ou por um táxi", e, de fato, nas últimas páginas da Autobiografia faz a apologia da Igreja Católica a partir da flor do dente-de-leão – é que todos os aspectos da realidade se integram em Chesterton para apontar-lhe uma mesma e única teologia.

À acumulação de fatos minúsculos e de impressões que lhe foram delineando subconscientemente a maneira de ver o catolicismo, somar-se-iam, para dar-lhe o contorno definitivo, as razões; mas até estas apareceriam de maneira indireta: "Os que me empurraram para o catolicismo foram os agnósticos, que têm o dom de suscitar dúvidas mais profundas que as suas":

Poderia divertir um amigo ou um inimigo a leitura de como eu aprendi, na verdade de uma lenda perdida ou na falsidade de uma filosofia predominante, coisas que poderia haver aprendido em meu catecismo – se o houvesse aprendido. Pode haver ou não certo entretenimento em ler como descobri por fim, num clube anarquista ou num templo babilônio, o que podia ter encontrado na paróquia mais próxima.

Em The Thing (1929), onde descreve aspectos de sua conversão, diz-nos:

A fé restitui ao homem o corpo, a alma, a razão, a vontade e a vida mesma. O homem que a recebe, recebe as funções que as outras filosofias querem destruir. Estaríamos muito perto da verdade dizendo que só ele possui a liberdade e a vontade, só ele possui a razão porque a dúvida absoluta nega a razão, só ele pode agir verdadeiramente porque só se age se a ação tem um fim.

Também houve em sua conversão influências pessoais: Frances Blogg, seu irmão Cecil Chesterton, Hilaire Belloc, o Padre John O'Connor, modelo do futuro Padre Brown. E houve, enfim, outras influências, de diversa ordem, mas decisivas: uma antiga admiração pelo culto mariano; uma figura que reaparece ao longo de sua obra, São Francisco de Assis, que "se acha como numa ponte que enlaça minha conversão e minha infância através de muitas outras coisas"; e escritos de santos católicos, entre os quais se destaca especialmente os de Santo Tomás de Aquino. Pois a evolução filosófico-teológica de Chesterton culminou no santo de Rocasecca, o qual formava junto com São Francisco de Assis o binômio sobre o qual Chesterton – e a cristandade – apoiaram ao mesmo tempo o coração e a mente. Escreveu o inglês, como disse Étienne Gilson, um dos principais tomistas do século XX, a melhor síntese da obra e do pensamento do Doutor Angélico. E, se dizemos que Chesterton é filósofo, não é porque tenha criado um sistema filosófico próprio, mas porque seu campo de discussão é o filosófico: é um tomista, segue a Filosofia Perene, e defende a realidade extramental do mundo, os sentidos e a razão como ponte para essa realidade, a transcendência absoluta de Deus.

E Chesterton respondeu com o cristianismo a todas as variantes do pensamento moderno, renovando, de certo modo, o mesmo cristianismo mediante suas riquíssimas argumentações pessoais e de sua arte. Era integralmente, de corpo e alma, na razão e na sensibilidade, comovido pela fé: "Não há nada mais emocionante que a Ortodoxia", diria. Sua originalidade radica-se, em parte, no modo como expressa – e experimenta – a teologia e a filosofia, como territórios não dissociados da sensibilidade e dos afetos. "O que a filosofia deveria ensinar é o gozo das coisas, e que o homem siga desfrutando o que realmente lhe deve apetecer, e é este o problema prático que o filósofo tem de resolver", diz na Autobiografia; resposta, em parte, à consequência imediata, vital – não só ideológica –, que se podia depreender de certas ideologias. Há pois algo novo no modo racional e ao mesmo tempo afetivo de expor seu pensamento; o estranhamento de que falamos e o querer repensar e reapreciar o mundo e antigas proposições têm uma finalidade. Diz, por isso, sem receio algum: "Eu me senti perdidamente apaixonado pelo universo", enquanto o cientista moderno se esfalfava em esmiuçá-lo para "metê-lo na cabeça", esterilmente, sem apaixonar-se por ele. A ideia de Chesterton implica uma atitude vitalmente positiva, essencialmente positiva. Propõe ele que o homem aprecie o cosmos – "a finalidade da vida é a apreciação" – como algo familiar, como seu lar, íntimo, dado por Deus, e ao mesmo tempo como um mundo "ferido”, cheio de "irregularidades", no qual se deve lutar sem descanso. Volta a dar sentido à antiga máxima: "Conhecer para amar".

Chesterton e o gênero policial

Os melhores escritos literários de Chesterton, os contos da saga do Padre Brown, pertencem ao gênero policial. Integra-se assim o inglês na longa e prolífica tradição que mantivera o mundo de fala inglesa neste gênero, mas, como veremos, com características muito peculiares.

De algum modo, antes mesmo de dedicar-se ao gênero policial, Chesterton era já um escritor do gênero policial, e tudo apontava para o posterior e feliz desenvolvimento que teria com o autor de Ortodoxia: à vocação para o mistério – e para a criação de mistério  – somava-se a qualidade de desenredar e de penetrar metodicamente os temas mais complexos. Não sabemos, pois, se se trata de um filósofo que escreve narrativas policiais (e por isso algo mais que policiais) ou de um narrador policial que, quando fazia filosofia, se servia de um método de investigador. Até suas obras mais filosóficas têm muito de gênero policial: Chesterton desenvolve a trama das ideias com o ritmo emocionante de quem revela, passo a passo, um grande mistério. Possivelmente nunca houve ninguém que haja conseguido expor as maiores abstrações desta forma. E o fato é que sua inclinação para o gênero policial tem que ver também com sua própria trama vital, com sua trajetória pessoal, como se sempre houvesse perseguido um enigma. Por isso, sob o signo do gênero policial escreve sua própria vida, como confessa nas primeiras páginas da Autobiografia:

Estou empregando agora um ardil próprio das histórias policiais. Na primeira página de um romance policial há, amiúde, três ou quatro insinuações destinadas a avivar a curiosidade, antes que a satisfazê-la; de modo que o respingo que atinge o padre [...], o guincho da cacatua na noite, o mata-borrão queimado e o não querer falar de cebola são mostrados no início, ainda que não sejam explicados senão no final. O mesmo ocorre nesta parte do capítulo, por demais pesado e difícil [...]. O paciente leitor pode perceber ainda que estas insinuações encobertas têm certa relação com o contínuo mistério de minha existência.

Talvez o ser ele inglês e um apaixonado leitor do gênero policial possa explicar o fato de haver em Chesterton algo central que sempre tendia à forma e ao método das histórias policiais. A Inglaterra, como é sobejamente sabido, tornou-se desde o século XIX sua promotora natural, até porque sua paisagem e sua mesma arquitetura forneciam uma atmosfera, uma psicologia e os cenários próprios para o gênero: bosques fantasmagóricos; jardins que tentam reproduzir os aspectos mais assustadores da natureza; castelos e outras construções góticas; espessas cortinas de névoa e de luzes incertas na cidade e nos caminhos noturnos... Paisagem e ciência, pois o detetive, com seu método e com sua racionalidade, é um pouco fruto do positivismo em sua versão inglesa, da visão cientificista que em grande parte domina na Inglaterra no século XIX e no XX. Mas Chesterton tomou só parte de todo aquele cenário e muito pouco desta ideologia: deu-lhe luz e caminho próprios, e suas peças policiais são por isso únicas no gênero.

Wilkie Collins (1824-1889) foi o primeiro romancista do gênero policial, e com sua extraordinária obra A Pedra Lunar (1868) lhe conferiu profundidade psicológica e grande beleza literária. Outro inglês, Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), de quem Chesterton se confessava ardoroso admirador, popularizou definitivamente as histórias de detetive com a conhecida dupla Sherlock Holmes e Watson. É opinião corrente, no entanto, que a origem do gênero policial remonta ao conto Os Crimes da Rua Morgue (1841), do poeta e narrador norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849). Criador de histórias de terror, seu universo e seus personagens são quase sempre sombrios e mórbidos, e diz Chesterton em Stevenson:

Vinho escuro, lâmpadas moribundas, cheiros narcóticos, uma sensação de asfixia entre cortinas de veludo negro, uma matéria que é ao mesmo tempo absolutamente negra e infinitamente macia [...]. O essencial de Poe é que sentimos que tudo se desfaz, até nós mesmos; os rostos já estão perdendo os traços, como o dos leprosos; as casas estão apodrecendo, do telhado aos alicerces; um grande cogumelo cinza, vasto como um bosque, está sugando a vida em vez de dá-la. [...] E essa corrupção se vê aumentada, por um gênio imaginativo, com a adição de uma sedosa face de luxo e até de uma terrível espécie de conforto ou de "almofadas purpúreas, onde a luz das lâmpadas se relambia".

O outro eixo da obra de Poe é, paradoxalmente, sua visão de mundo positivista; o detetive Auguste Dupin é reflexo de seu racionalismo e de seu fervor pela exatidão científica. Fervor que vai além até de sua prosa policial, pois, como confessa ao referir-se a seu poema mais célebre, O Corvo: "Quero deixar claro que nenhum dos pontos de sua composição pode ser atribuído ao acaso ou à intuição, e que o trabalho se desenvolveu passo a passo, até seu término, com a precisão e com a rígida coerência de um problema matemático". E como "problema matemático" verá o investigador de Poe também o crime cometido por um ser humano. Tudo, incluindo as motivações de um delito, se inscreve na mesma lógica da matemática.

Ao contrário da atmosfera de Poe, a de Chesterton é sempre translúcida e vivificante, de um mistério claro, e tudo nela se orienta ao desfrute da "natureza das coisas", até quando ele é autor de histórias policiais, pois nelas quer mostrar que o mal conspira, no fundo, contra uma ordem maior que deve ser defendida e conservada. Diz, neste sentido, o Padre Brown ao estupefato ladrão de "A Cruz Azul", o primeiro conto deste livro:

A razão e a justiça imperam até na mais deserta e mais remota estrela. Olhe essas estrelas. Não é verdade que parecem diamantes e safiras singulares? Pois bem, imagine o senhor a mais louca geologia, a mais louca botânica que lhe possam ocorrer. Imagine florestas de diamantes com folhas de brilhantes. Imagine que a Lua é uma lua azul, que é uma singular safira elefantina. Mas não imagine que essa desvairada astronomia possa afetar os princípios da razão e da justiça. Em planícies de opala, como debaixo de penhascos talhados em pérola, sempre encontrará o senhor a sentença: "Não roubarás".

O mundo em que se movem seus personagens, muitas vezes festivo, algo onírico outras, de paisagens que recordam as dos sonhos ou as dos espaços infantis, tem a mesma direção de toda a ficção de Chesterton: devolver ao homem sua inocência, e mostrar-lhe o milagre sagrado de seu velho cosmos e de seu próprio ser.

As histórias do Padre Brown não são, pois, como já dissemos, meros contos policiais, conquanto seu padrão seja o do gênero: delito, enigma, investigação e solução; também propõem mistérios mais amplos que os circunstanciais ao relato e compendiam sempre a profunda fé do autor. São uma mimese de uma realidade mais complexa – e, ao fim e ao cabo, mais real – que a de Poe ou que a de Doyle. Além do mais, cada um destes contos são verdadeiras peças literárias, tanto por sua trama como pelas imagens e pelas metáforas que emprega, pelas quase onipresentes aliterações, pelas descrições plásticas em que abunda essa predileção de Chesterton pelas cores e pela luz da atmosfera, por Londres e todas as suas facetas.

A técnica central que utiliza Chesterton, nestas como em outras histórias de mistério, é a de um grande criador: o enigma que o detetive elucida baseia-se numa ideia central simples, como o diz o próprio autor no apêndice da presente edição, "Como Escrever uma História Policial". Não sucederá nunca que o leitor fique algo decepcionado ante um mistério demasiado complicado que não lhe foi bem sugerido em alguma parte do relato; não se oculta do leitor nenhuma informação, ao contrário do que amiúde acontece nas tramas policiais; e o criminoso aparece sempre entre os "atores principais". Nisto residem sua mestria e o verdadeiro interesse das histórias: em criar disfarces verossímeis, mas inesperados; em que o leitor chegue à "anagnosia" do enigma tendo sobre a mesa os mesmos elementos de que dispõe o investigador. Alguns mistérios que parecem demasiado árduos têm solução, conquanto engenhosíssima, de grande simplicidade, como é caso de "O Homem Invisível" e de "Os Pés Estranhos", dois dos contos deste volume, ou de "O Homem Verde" (de O Escândalo do Padre Brown), em que a interpretação de uma só frase dita descuidadamente pelo assassino – sentença em que provavelmente o leitor não se detém – faz que o Padre Brown descubra tudo.

Como antecedentes do gênero policial na obra chestertoniana, podemos citar o grupo de contos que aparecem em 1905 com o título de O Clube dos Negócios Estranhos, em que uma sociedade tem por objetivo criar profissões "inéditas" que não existam na realidade e de que, todavia, se possa viver. O enigma de cada história é constituído por cada uma das estranhas profissões, que o leitor só descobre ao final de uma série de peripécias. Mas é sem dúvida em O Homem Que Foi Quinta-feira, o mais conhecido de seus romances, que Chesterton se transforma em mestre do suspense. É, ao mesmo tempo, uma história de mistério, de disfarces geniais, e uma alegoria que entrelaça ficção e filosofia, arte e pensamento, os contrapontos essenciais de toda a sua obra.

Virá a lume em 1911 o primeiro grupo de relatos do Padre Brown, este mesmo A Inocência do Padre Brown. As séries seguintes pertencem a diferentes períodos: A Sabedoria do Padre Brown (1914), A Incredulidade do Padre Brown (1926), O Segredo do Padre Brown (1927) e, por último, O Escândalo do Padre Brown (1935).

Chesterton escreveu também outras histórias policiais, sempre com seu selo: O Assassino ModeradoAs Árvores do OrgulhoO Homem Que Sabia DemaisO Cinco de EspadasA Torre da Traição, etc. E, como um reconhecimento maior ao escritor em matéria de literatura policial, Chesterton passa a integrar em 1930 o famoso Detection Club, formado por um grupo de escritores do gênero que se propunha a estabelecer-lhe as bases. Foi deste clube que saiu a célebre série de relatos O Almirante Flutuante, e foi Chesterton, portanto, como o próprio leitor o poderá apreciar, tão genial criador como mestre.

Origem do Padre Brown

Para criar seu sacerdote-detetive, um modesto pároco de um povoadozinho de Essex, Chesterton inspirou-se num homem real, o sacerdote John O'Connor, pároco de St. Anne de Keighley.

O nosso autor e O'Connor conheceram-se pessoalmente em 1904, na noite em que o escritor dava uma conferência no pequeno Keighley. A primeira coisa do sacerdote que chamou a atenção de Chesterton foi "o tato e a graça que demonstrava" em qualquer ambiente; era um homem pequeno "de rosto afável e de expressão de gnomo"; "não conheci nunca outro homem que pudesse saltar com tanta facilidade de um assunto a outro, nem que fosse mais bem informado, com informação o mais das vezes técnica das coisas".

O Padre O'Connor já se havia dirigido a Chesterton em 1903 numa carta em que lhe expressava sua profunda admiração, mas foi do encontro pessoal deles que surgiu uma das relações de amizade mais importantes para o escritor. A ideia de transformar o Padre O'Connor em sua melhor personagem remonta a um de seus encontros, no qual se deu um incidente de "ironia colossal". Chesterton estava conversando com o sacerdote sobre "certa sordida questão social de vício e de crime [...], e, cumprindo um dever necessário para impedir que eu caísse numa armadilha, contou-me certos fatos que conhecia relacionados com a prática de perversões". Confessa Chesterton seu estupor: "Era uma experiência curiosa descobrir que aquele celibatário, tranquilo e agradável, havia sondado tais abismos muito mais que eu". Ao regressarem à casa de uns amigos, depararam com muitas visitas, entre as quais estavam dois jovens estudantes de Cambridge com quem o padre logo entabulou conversa, saltando de um tema a outro, arte, filosofia... Depois de O'Connor deixar a peça, os estudantes comentaram que o padre sabia muito, conquanto, após "um silêncio reflexivo", um deles tivesse expressado quão pouco podia saber do "autêntico mal do mundo" aquele homem encerrado em sua paróquia. Foi tal comentário o que parecera a Chesterton uma "ironia colossal", e ele estivera a ponto de soltar uma gargalhada na sala. Ao lado do "sólido conhecimento do satanismo que tinha o sacerdote", o dos estudantes era como o "dos bebês no próprio carrinho".

Surgiu-me na mente a vaga ideia de dedicar a um fim artístico aqueles cômicos despropósitos que eram, ao mesmo tempo, trágicos, e escrever uma comédia em que um sacerdote aparentaria não saber nada, conhecendo porém o crime melhor que os criminosos [...]. Permiti-me a séria liberdade de tomar meu amigo e dar-lhe uns quantos retoques, alterando-lhe o chapéu e o guarda-chuva, desarrumando-lhe a roupa, mudando-lhe o rosto inteligente numa expressão cheia de insipidez, e, de maneira geral, fantasiando o Padre O'Connor de Padre Brown.

Originalidade do Padre Brown

Neste contraste está já sintetizada a originalidade do Padre Brown e o achado literário de suas multifacetadas histórias. O sacerdote é um "insípido habitante" do leste de Inglaterra, tem uma cara "redonda e insípida como um pudim de Norfolk; uns olhos tão vazios como o Mar do Norte". O traço fundamental do sacerdote é "não ter traço digno de nota; sua finalidade, não ter fim; e pode-se dizer que sua qualidade mais notável era não ser". Ademais, é correntíssimo o sobrenome "Brown". Atrás porém do aspecto vulgar, do rosto inexpressivo e dos gestos desengonçados, encobria-se a profunda ciência da personagem que estava destinada a desconcertar e confundir os mais lúcidos cérebros e a destoar dos mais refinados ambientes.

Embora seja verdade que no gênero policial os detetives- protagonistas quase nunca são profissionais, mas meros amadores ou policiais afastados da profissão que precisamente corrigem os erros da polícia oficial, o Padre Brown é quase um antitipo de protagonista – ou uma espécie de antiprotagonista. Poucas pinceladas, uma indumentária simplíssima e essa qualidade permanente de não sobressair desenham o impreciso sacerdote.

Também o método do nosso detetive é original e muito diferente do de seus pares Dupin ou Holmes: é o método de alguém que, como uma sombra ou silhueta, contempla os fatos de um segundo plano, como "um móvel" afastado num cômodo, e cujos raciocínios são expostos sem alarde nem relevo – e o mais das vezes com fina ironia.

Enquanto Poe e Doyle fazem do delito um fenômeno antes de laboratório, razão por que o que sobressai na narração é a mente do investigador, sempre brilhante, inequívoca e capaz de estabelecer, com matemática agilidade, todas as associações úteis para a solução do crime, Chesterton apresenta-nos um detetive que para resolver o enigma extrai suas conclusões dos mesmos meandros da alma humana, de uma paixão humana, de um gesto humano. O Padre Brown representa a sabedoria, Dupin e Holmes a análise. Neste sentido, o interesse que suscitam as histórias do Padre Brown é maior, porque mais verossímeis. Elas não têm por centro a lógica dos fatos externos, nem a solução do enigma sequer (embora tudo isso tenha importância capital no relato), mas um problema humano, uma transgressão possível, um crime possível, e amiúde mergulham na parte metafisica do delito. Não por acaso Chesterton escolheu um investigador cuja verdadeira "profissão" é a de sacerdote: escolheu-o precisamente porque, como sacerdote, ele "conhece o crime melhor que os criminosos", e sua visão última é a da misericórdia. Sim, porque Chesterton quer mostrar aqui, acima de tudo, que o delito é redimível. O Padre Brown, com pasmosa naturalidade, sempre se aproxima do delinquente, e reconhece que, como o "seu delinquente", ele mesmo tem uma natureza vulnerável, conquanto resguardada. Pois, como confessa:

Não existe um homem que seja realmente bom enquanto não saiba quão mau pode ser, e só enquanto não se deu conta disso com exatidão é que pode falar desdenhosamente [...] dos criminosos, como se estes fossem símios da selva que vivessem a milhares de milhas.

Este ponto de vista contribui para o realismo e para a originalidade destas histórias: trata-se de seres possíveis, às vezes não completamente sórdidos nem completamente imutáveis, e isto propicia ao sacerdote-detetive confessá-los ou convencê-los do mal cometido – como em "As Estrelas Fugazes", em "Os Pés Estranhos", em "O Martelo de Deus". Outras vezes a confissão é apenas sugerida, como no parágrafo final de "O Homem Invisível", após ter o sacerdote descoberto o criminoso:

E, sob as estrelas, percorreu muitas horas o Padre Brown aqueles morros cobertos de neve em companhia de um assassino, e jamais se saberá o que eles se disseram um ao outro.

Tudo isso se passa sem que o relato perca a forma policial nem artística. Mas o exemplo mais claro desta visão salvífica é dado pela personagem Flambeau, que aparece com seus passos gigantes ora como colosso do crime, sendo cada um de seus roubos "quase uma nova espécie de pecado"; ora como homem novo, como detetive particular e companheiro do Padre Brown; ora, por fim, como homem que se retira de ambas as "atividades" e vive uma vida familiar feliz numa ensolarada província da Espanha. Será justamente na residência do último Flambeau que o Padre Brown – na penúltima série de relatos (O Segredo do Padre Brown) e depois de sua fama, seu método e seu engenho, algo quixotescos e já mundialmente conhecidos, terem suscitado muitas controvérsias – nos dirá qual é a verdadeira chave de suas soluções, tão ao arrepio do método "cientificista" dos detetives:

A ciência é uma coisa grande. Em um sentido verdadeiro, uma das maiores palavras do mundo. Mas o que querem significar com ela [...] noventa e nove por cento das vezes que a empregam? Por exemplo, quando dizem que o "detetivismo" é uma ciência. Ou quando dizem que a criminologia é uma ciência. Referem-se aqui a que ela se funda em sair do homem e estudá-lo como a um inseto gigante; em mantê-lo sob o que eles diriam uma luz fria e imparcial, e que eu diria uma luz morta e desumanizada. Querem dizer levá-lo para longe como se ele [...] fosse um animal pré- histórico que se espanta com sua forma de criminoso, como se ele fosse uma classe de vegetação inverossímil [...]. Quando o cientista fala de um tipo, não se inclui nunca a si mesmo, mas ao vizinho. Provavelmente o vizinho mais pobre. Não nego que às vezes a luz fria produza bons efeitos, embora, de certo modo, seja o inverso da ciência. Eu não tento elidir o homem. O que tento é meter-me dentro do assassino [...]. Meto-me dentro de um homem. Sempre estou dentro de um, e lhe movo os braços e as pernas; mas espero e trabalho até encontrar-me dentro do assassino, pensando-lhe os pensamentos e acalentando-lhe as paixões; até conseguir viver em sua postura encolhida e em seu ódio concentrado; até ver, com seus olhos ensanguentados e entreabertos, aparecer o mundo por entre as frestas de sua abstração meio louca, correndo atrás da perspectiva de uma ruela reta que desemboca numa poça de a ser um verdadeiro assassino. sangue; até chegar

[...]

Vi-me a mim mesmo cometer os assassinatos. Não digo que os cometesse de fato [...]; o que quero dizer é que pensei e pensei de que maneira poderia um homem chegar a ser assim, até que me dei conta de que eu mesmo era daquela maneira em tudo, menos em consentir formalmente a ação.

O Padre Brown representa um dos grandes tópicos da obra chestertoniana: a humildade como atitude essencial para a verdadeira apreciação da realidade: "A única maneira de apreciar até uma erva daninha é sentir-se indigno dela". O grande segredo do sacerdote-detetive, de suas descobertas e soluções, é sua universal modéstia. E é também um recurso feliz na trama dos acontecimentos e no clímax das narrativas: o sacerdote confunde o investigador oficial e um descrente auditório surgindo do silencioso lugar em que trabalhou sua tranquila e fecunda sabedoria; quando é elogiado ou reconhecido, tenta escapar ou ocupa-se confusamente de seus objetos – em especial o velho guarda-chuva que sempre o acompanha –, em impremeditada demonstração de modéstia. Suas progressivas descobertas terminam normalmente numa afirmação paradoxal e desconcertante: é o começo do clímax; o paradoxo ou contradição aparente contém o xis do problema. É o estilo do próprio Chesterton em seus ensaios para dominar a tensão do discurso: a uma afirmação paradoxal que suspende o leitor como as primeiras notas de uma fuga, segue-se uma explicação coerente e brilhante. Sim, os paradoxos que amiúde se quis ver, na obra de Chesterton, como meros artifícios formais são, no fundo, como uma chama súbita que ilumina aspectos do mundo ignorados ou carentes de nova explicação; são amiúde a descrição de uma realidade também "paradoxal", de "irregularidade recôndita".

Quem, enfim, pode deixar de ver nesta personagem os traços pessoais de seu criador, que, como dizia Étienne Gilson, "se desculpava de ter razão e fazia com engenho que se lhe perdoasse a profundidade"?

Um epílogo

Chesterton morre em 14 de junho de 1936 aos sessenta e dois anos, sem descendência. Frances Blogg falecerá dois anos depois, como se disse, de "viuvidade". Seu diário constitui documento essencial para a biografia do nosso escritor, que ombreia com seus tão amados e admirados Cervantes e Dickens.

Encontraram-se há poucos anos vários manuscritos inéditos de Chesterton (entre os quais duas histórias do Padre Brown), que vêm engrossar ainda mais uma obra já volumosíssima. Aliás, a editora Ignatius Press, dos Estados Unidos, empreendeu a última edição de suas obras completas – excluídos os novos manuscritos – em quase quarenta volumes.

Mas a obra de G. K. Chesterton – e parafraseio aqui o que e ele mesmo disse da de Dickens – não se deixa medir por períodos nem por escritos; há simplesmente cortes, de maior ou menor extensão, dessa substância fluida e mesclada chamada Chesterton. Talvez possamos definir-lhe a obra com um exemplo do gótico, especialmente o daquelas catedrais sobre as quais tantas vezes ele escreveu, em cada uma das quais, como em cada uma das peças de Chesterton, se fundem e se plasmam de forma homogênea diversas épocas para formar um único grande monumento, com suas fantasias alegóricas e suas torres esguias por fora, e seus vitrais coloridos e sua esplêndida luz por dentro.

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