G. K.’s Weekly, 19 de dezembro de 1931
Eu suponho que o bolchevismo, no sentido da ação tomada pelos Guardas Vermelhos[1], pode ser verdadeiramente descrito como “pintar a cidade de vermelho”. E a velha metáfora da gíria é ainda mais adequada, pois apenas uma cidade é que pode ser pintada de vermelho. Ninguém jamais imaginou que alguém pudesse pintar um país de vermelho, são no máximo os municípios que se tornam socialistas nesse sentido. Pintar uma cidade de vermelho pode parecer uma grande metáfora; mas, afinal, é uma metáfora limitada – e só é imaginável porque é limitada. Hilários alunos da graduação de Oxford costumavam pintar as portas da frente de seus tutores em cores tão vivas; e depois disso é apenas uma questão de grau acadêmico, e precisa apenas de alguns retoques finais para transformar o Old Tom[2] ou a Bodleiana[3] na mesma tonalidade. Mas nenhum estudante, em seu momento mais feliz, jamais propôs estender o processo de Oxford para Oxfordshire. Ninguém propôs sair com pincéis de pelo de camelo (eu espero que isso não seja impresso como pincéis de pelo de camelo), ou com quaisquer outros pincéis, para pintar todas as pequenas folhas de grama. Ninguém se propõe a avançar contra uma floresta de verão e colori-la artificialmente como uma floresta de outono. Seria um grande empreendimento prometer pintar não apenas o lírio, mas pintar também todas as margaridas e dentes-de-leão. Seria uma ambição considerável tentar transformar todos os rios em sangue e encarnar o mar multitudinário; e o aluno da graduação em Oxfordshire provavelmente preferiria sua própria ambição original e mais modesta de incendiar o rio Tâmisa[4]. Mas essa visão selvagem não é mais selvagem ou mais impossível do que a visão de certos presunçosos progressistas das cidades, que pensam poder aplicar a sua cor política particular a toda a variada e muito enraizada vida social dos campos da Cristandade. É possível estabelecer algo como esse tipo de socialismo semita em uma cidade moderna, precisamente porque a cidade moderna já está muito entorpecida e esmagada pelo capitalismo. Em outras palavras, é possível à revolução pintar a cidade de vermelho, como já foi possível que a fumaça e fuligem pintassem-na de preto. Mas isso só é possível porque esse processo não é realmente uma revolução, nem mesmo uma anarquia, mas sim uma feia uniformidade. Isso só é possível porque uma sociedade é governada por apenas um grupo possuidor de uma única ideia. Um povo livre preferiria pintar sua cidade com todas as cores do arco-íris.
Entretanto, quando isso é admitido, é de bom tamanho acrescentar que não considero a noção bolchevique de pintar a cidade de vermelho um tom mais tolo do que a noção imperialista de pintar o mapa de vermelho. Tanto o patriotismo de tipo errado, como o jingoísmo, quanto o cosmopolitismo do tipo errado, como o jacobinismo, repousam na mesma ilusão vulgar: a ideia de impor suas próprias limitações cockney[5] às liberdades de toda a humanidade. Pois, na verdade, coisas que agora são comumente chamadas de erros contrários são, muitas vezes, o mesmo erro. E eu lamentaria se algo do que escrevi aqui, em crítica ao que é chamado de revolucionário, fosse tomado como um indicativo da mais leve aprovação da maior parte daquilo que é chamado de reacionário. E tomei esta metáfora funcional de pintar a cidade de vermelho não apenas como um ataque ao tipo errado de revolucionários, mas como que envolvendo de uma forma conveniente o ataque real ao tipo errado de reacionários. Tendo dito tanto sobre os erros dos progressistas, gostaria de dizer algo sobre os erros dos conservadores. Mas, na verdade, o conservador comete exatamente o mesmo erro do progressista. O erro consiste no fato de que cada um deles permite que a verdade seja determinada pelo tempo. Ou seja: ele julga uma coisa a partir do que foi ontem, é hoje ou será amanhã, e não pelo que ela é na eternidade.
Não é razoável pintar uma cidade de vermelho no sentido de pintar os postes de luz de vermelho porque a caixa de correio é vermelha. Ou seja, não é razoável aplicar uma ideia, como a ideia do coletivismo, à complexidade de toda a comunidade. Mas há uma ideia que é ainda mais irracional: a ideia de chegar à cidade em uma bela manhã e descobrir que três dos postes já foram pintados de vermelho, enquanto cinco deles ainda são verdes; e então jurar que essa proporção particular de cores é tão sagrada e imortal como as pedras preciosas coloridas da Nova Jerusalém[6]. Em suma, é dar o peso da imortalidade ao momento particular em que um determinado homem entra na cidade. E o mesmo se aplica ao momento particular em que um homem particular entra no mundo. O que há com o conservador é que ele atribui uma importância sobrenatural ao seu próprio aniversário.
Em vez de datar a nossa era desde o nascimento de Cristo, ou (se você preferir) desde o nascimento de Marco Aurélio[7] ou da Sra. Eddy, ele a data inteiramente a partir de seu próprio nascimento. O que está em voga quando ele nasceu é a Constituição Britânica, então ela deve ser reverenciada. O que ainda não havia acontecido naquela data específica é a Revolução Bolchevique, que deve ser resistida. Em vez de considerar um processo e testá-lo por um princípio, ele apenas considera até onde esse processo já foi e o testa apenas para saber se está avançando mais longe. Esta é a verdadeira irracionalidade que os homens realmente sentiram, embora obscuramente, em um certo tipo de toryismo[8]. Não é que ame o passado, mas sim o presente – um apetite muito mais absurdo. É uma ilusão essencialmente impossível, pois está perpetuamente destruindo a si mesma. Cada passo do progressista torna-se um status para o conservador: toda revolução perversa torna-se numa instituição digna; cada coisa abominável que é tentada torna-se numa coisa admirável porque foi bem-sucedida – não por ser uma instituição bem-sucedida, mas apenas porque foi uma revolução bem-sucedida. Muitas vezes, ser um conservador significa apenas ser um homem que conserva as revoluções.
Talvez seja possível dizer que eu posso ser um reacionário, mas eu tenho certeza de que não sou um conservador. Sou um reacionário no verdadeiro sentido de que reagiria contra muitas coisas do passado e também do presente; eu as testaria não por um calendário que registra se elas aconteceram, mas por um credo que decide se deveriam acontecer. Algumas das coisas que desejo já aconteceram e, portanto, as preservarei; outras ainda não aconteceram e, portanto, eu participaria de qualquer revolução para obtê-las. Mas o teste para pintar a cidade de vermelho é se eu gosto de vermelho, não se gosto de anteontem ou do meio da semana que vem. Tudo isso é absurdamente óbvio, mas ainda mais absurdamente negligenciado. E sua negligência tem muito a ver com as atuais dificuldades da democracia industrial. Aqueles que acreditam estar resistindo sabiamente à mudança estão simplesmente se amarrando àquelas mudanças mais recentes. Por exemplo, não há nenhuma razão particular para que aqueles que acreditam sinceramente em uma espécie de toryismo territorial devam empreender a defesa desesperada do capitalismo industrial. Não há razão para que os herdeiros do partido Young England[9] devam justificar todos os erros da Escola de Manchester[10]. No entanto, quase todos os tories trabalham para encobrir quase todos os trusts[11], como se eles fossem parte da Constituição Britânica ou de qualquer outra constituição. Na verdade, eles fizeram parte de uma revolução, e uma revolução recente – aquela que na verdade chamamos na linguagem comum de Revolução Industrial. E não ocorre às mentes conservadoras que os revolucionários podem estar um pouco mais dispostos a acreditar que algumas de suas inovações não são sábias se nós mostrarmos a consciência de que algumas das nossas próprias inovações passadas foram particularmente tolas?
A verdade, claro, é que tudo o que há de realmente pedante ou desumano na campanha dos progressistas deve o seu sucesso quase inteiramente ao fato de ter oposição apenas pelos conservadores. Não possuem oposição pelos reacionários razoáveis, que têm um ideal alternativo do Estado; mas simplesmente por pessoas que compartilham o mesmo ideal e apenas se opõem a que o ideal seja ainda mais radicalizado. Os socialistas têm uma qualidade sólida e respeitável: eles sabem o que querem; e eles nunca serão resistidos com sucesso, exceto por alguém que realmente sabe que deseja algo além.
Tradução por João Medeiros.
[1] Os Guardas Vermelhos eram destacamentos paramilitares organizados pelos bolcheviques. Tinham como objetivo defender seus ideais comunistas durante a Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil Russa contra os Guardas Brancas. Seus membros eram constituídos majoritariamente de operários, camponeses e militares insatisfeitos de baixa e média patente do Exército Imperial Russo, que colapsara durante a Grande Guerra.
[2] Sino Great Tom, localizado na Tom Tower, a principal entrada para a Christ Church, a principal das faculdades que constituem a Universidade de Oxford.
[3] A Biblioteca Bodleiana é a principal biblioteca de pesquisa da Universidade de Oxford. Fundada no início do século XVII, é uma das mais antigas bibliotecas europeias.
[4] Segundo maior curso fluvial da Inglaterra, o rio Tâmisa é famoso por atravessar meio sul do país, passar por Oxford e terminar em Londres, onde finda seu curso ao desaguar no Mar do Norte.
[5] Termo utilizado para se referir aos nativos dos bairros da região leste de Londres.
[6] Chesterton faz referência à variedade das pedras preciosas relatadas em Apocalipse XXI, pelo Apóstolo São João, como alicerces da Nova Jerusalém.
[7] Marco Aurélio (121-180) foi imperador do Império Romano considerado o último dos “Cinco Bons Imperadores”. Quarto imperador da dinastia antonina, Marco Aurélio era também um pensador estoico e alcunhado “Imperador Filósofo”, e é particularmente conhecido por seus escritos originalmente intitulados “Cartas para Mim Mesmo”, largamente traduzidos e publicados na modernidade sob o título “Meditações”.
[8] O termo tory é utilizado para se referir aos membros do partido conservador inglês, bem como ao próprio partido.
[9] Movimento político da era vitoriana com uma ideologia política que visava um feudalismo idealizado misturado com certas características contraditoriamente modernas, como o absolutismo monárquico e o conceito de uma igreja estatal forte.
[10] Escola de liberalismo econômico, político e social que teve origem em Manchester, Inglaterra.
[11] Trusts são uma forma de organização em conglomerado de vários negócios no mesmo setor que, ao se unir, passa a controlar a produção e distribuição de um produto ou serviço, limitando assim a concorrência.
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