O problema do Livro de Oração, por G. K. Chesterton

 

The Book of Common Prayer: A Rookie Anglican Guide to the Prayer Book

Um dos eventos que teria me tornado católico, se eu já não o fosse, foi o curioso caso do Novo Livro de Oração. Ele me revelou uma realidade que eu não tinha percebido até então. Realmente havia uma Igreja da Inglaterra; ou melhor, realmente havia uma Inglaterra que em grande parte imaginava que possuía e controlava uma Igreja. Mas esta Igreja não era a Igreja a que eu pensava pertencer; o grupo de homens perspicazes, cultos e sinceros que afirmavam ser católicos. Era um contexto de homens muito mais vasto e vago; que não acreditava em nada em particular, mas que se dizia protestante. Mas o ponto vital era que, quer afirmassem ser protestantes ou se gabassem clamorosamente de serem ateus, todos pareciam ter essa ideia fixa; que eles possuíam a Igreja da Inglaterra; e poderiam transformá-la em um Templo Mórmon se quisessem. De qualquer forma, eu não poderia continuar sendo possuído dessa maneira.

Mas para entender tudo o que estava envolvido, é necessário dizer uma palavra sobre o próprio Livro de Oração Anglicano. O Livro de Oração Comum[1] é a obra-prima do protestantismo. É mais do que o trabalho de Milton. É a única possessão e atração positiva; o único ímã e talismã mesmo para pessoas de fora da Igreja Anglicana, assim como as grandes catedrais góticas para pessoas de fora da Igreja Católica. Acredito que posso falar por muitos outros convertidos quando digo que a única coisa que pode produzir qualquer tipo de nostalgia ou arrependimento romântico, qualquer sombra de saudade em quem realmente voltou para casa, é o ritmo da prosa de Cranmer. Todas as outras supostas superioridades de qualquer tipo de protestantismo são bastante fictícias. Diga a um católico convertido que ele perdeu sua liberdade e ele rirá. Uma ilustre dama literária escreveu recentemente que eu havia entrado na mais restritiva de todas as comunhões cristãs, o que me divertiu monstruosamente. Um católico tem cinquenta vezes mais sentimento de ser livre do que um homem preso na rede dos compromissos nervosos do anglicanismo; assim como um homem que considera toda a Inglaterra sente-se mais livre do que um homem que obedece aos whips[2] de um partido em particular. Ele tem a extensão de dois mil anos cheios de mil e duzentos mil controvérsias, debatidas por pensador contra pensador, escola contra escola, guilda contra guilda, nação contra nação, sem limite exceto o fato lógico fundamental de que as coisas valiam a pena discutir, porque elas poderiam ser finalmente resolvidas e encerradas. Quanto à Razão, nosso monopólio é praticamente admitido no mundo moderno. Exceto por um ou dois velhos ateus sombrios em Fleet Street (por quem tenho grande simpatia), nada, exceto Roma, defende a confiabilidade da Razão hoje. Muito mais forte é o apelo da irracionalidade; ou daquela beleza que talvez esteja além da razão. A Ladainha Inglesa, a música e a magia do grande estilo do século XVI – isso chama um homem para trás como o canto das sereias; como Virgílio e os poetas talvez tenham chamado a um pagão que havia entrado na Igreja Primitiva. Só que, sendo romanista e, portanto, racionalista, ele não volta atrás; ele naturalmente não esquece todo o resto porque seus oponentes quatrocentos anos atrás tinham um talento estilístico que agora perderam completamente. Pois os anglicanos não podem fazer tal truque agora, mais do que ninguém. As orações modernas, e as deles talvez mais do que qualquer outra, parecem ser perfeitamente incapazes de evitar um banal estilo de jornal. E a prosa do Livro de Oração parece segui-los como um eco irônico. Lambeth ou Convocation publicará uma oração dizendo algo como: “Guiai-nos, ó Senhor, para a solução de nossos problemas sociais”; e o grande órgão de outrora gemerá ao fundo. “... por todos os desolados e oprimidos”. Os primeiros anglicanos pediam por paz e felicidade, verdade e justiça; mas nada pode impedir os últimos anglicanos, e muitos outros, do horrível hábito de pedir melhorias nas relações internacionais.

Mas por que o velho livro de orações protestante tem um poder como o da grande poesia sobre o espírito e o coração? A razão é muito mais profunda do que a mera evasão do estilo jornalístico. Pode ser colocado em uma frase, tem estilo, tem tradição, tem religião, foi escrito por católicos apóstatas. É forte, não na medida em que é o primeiro livro protestante, mas na medida em que foi o último livro católico. Acontece que isso pode ser provado da maneira mais prática a partir dos detalhes reais da prosa. As passagens mais comoventes do antigo Livro de Oração Anglicano são exatamente aquelas que menos se assemelham à atmosfera anglicana. São comoventes, ou mesmo excitantes, precisamente porque dizem as coisas que os protestantes há muito deixaram de dizer; que somente os católicos ainda dizem. Qualquer um que conheça alguma coisa de literatura sabe quando um estilo se eleva aos píncaros dos seus esforços; e nestes casos é sempre dizer fortemente o que ainda nos esforçamos para dizer, ainda que fracamente; mas que ninguém mais se esforça para dizer. Que alguém recorde por si mesmo as melhores passagens do Livro de Oração Comum, e logo verá que elas se referem especialmente a pensamentos e temas espirituais que agora parecem estranhos e terríveis, mas de qualquer forma, o inverso do comum; “... na hora da morte e no dia do Juízo”, quem fala sobre a hora da morte? Quem fala sobre o Juízo Final? Apenas uma ninhada de pequenos padres miseráveis da Missão Italiana. Certamente não o popular e eloquente Deão de Bumblebury, que é tão amplo e ao mesmo tempo tão alto. Certamente não o charmoso e elegante vigário da Santo Etelberto, que é tão alto e ao mesmo tempo tão amplo. Menos ainda o clérigo ajudando na mesma paróquia, que é francamente baixo.[3] É o mesmo em todas as páginas, onde esse espírito inspira esse estilo. “Não nos permitais, por quaisquer dores de morte, cair de Ti”. “Ah, é isso que te pega” (ou palavras nesse sentido), como Lord Peter Wimsey realmente disse sobre essa frase, no conto detetivesco da Srta. Dorothy Sayers, que, como Lord Peter, sabe bastante sobre outras coisas além de venenos; e entende muito bem as tradições históricas de seu herói. Mas você já ouviu o pároco recém-saído do campo de críquete, ou o vigário sorrindo sob as bandeiras do Reino Unido do comício conservador, a insistir nesse penúltimo perigo, ou no perigo de cair de Deus em meio às dores da morte? Muito mórbido. Assim como aqueles livros devocionais dos dagos[4]. Tão romano.

Não creio que os velhos anglo-católicos que eram meus amigos, ou os muitos que ainda são meus amigos, negariam que houve uma moderna vulgarização da religião, em grande parte através da disseminação desse otimismo oficial. Mas, embora eles mesmos sejam muitas vezes livres da forma vulgar dela, dificilmente poderiam negar que ela é amplamente oficial e largamente difundida. No entanto, foi um grande choque para mim descobrir quão oficial e difundida era. Exagerei a importância de uma minoria inteligente, porque era importante para mim. Mas o público e o mundo exterior foram entregues a demagogos arianos e pelagianos como o Deão Inge e o Dr. Barnes; e uma espécie de protestantismo negativo ainda podia varrer o campo. E ele varreu todo o campo na questão do Livro de Oração. A proposta de um Livro de Oração emendado, ou melhor, de dois Livros de Oração alternativos, não foi decidida para a Igreja pelos pios ou pelos comungantes; ou pela congregação. Foi decidida por uma multidão de políticos, ateus, agnósticos, dissidentes, parses[5]; inimigos declarados dessa ou de qualquer Igreja, que por acaso tivesse M.P.[6] depois de seus nomes. Se a coisa toda tinha algum lema histórico ou merecia algo melhor do que uma manchete, o que estava escrito em toda aquela história anglicana não era Ecclesia Anglicana, ou Via Media, ou qualquer coisa similar; foi Cujus Regio Ejus Religio; ou dando a César o que é de Deus.

Acrescento um incidente para contrastar Style, entre homens que foram católicos por mil e quatrocentos anos, com aquele entre homens que foram protestantes por quatrocentos anos. Uma organização protestante presenteou todos os ateus, etc., que haviam votado protestante, com uma grande bíblia preta ou o Livro de Orações Comum, ou ambos, decorados do lado de fora com uma imagem das Casas do Parlamento. In hoc signo vinces. Seria muito idólatra colocar uma cruz ou crucifixo fora de um livro; mas uma imagem do Parlamento, onde os fundos partidários são guardados e os títulos de nobreza vendidos... Esse é o templo onde moram os deuses de Israel... Sabemos que o mundo progride, e a educação certamente é estendida, e há menos analfabetos; e acredito que tudo bem com isso. Mas esses quatro fortes séculos de Inglaterra protestante começam com um Livro de Oração Comum, no qual, mesmo em meio à traição e pânico de Cranmer, e no exato momento em que os homens se desprendem de Roma e da Cristandade, eles podem levantar em uma linguagem tão sublime um grito tão autêntico dos homens cristãos: “Por Tua preciosa morte e sepultamento; por Tua gloriosa ressurreição e ascensão; e pela vinda do Espírito Santo”. Esses séculos começam com aquele discurso de homens ainda por instinto e hábito de espírito católico; e a civilização protestante evolui e a educação se espalha, e se amplia em riqueza e poder e cidades e faculdades; até que finalmente se produz o fruto maduro e final de sua cultura, na forma de um livro grosso e preto de estilo acolchoado, com uma visão de foto real, uma visão de um dos pontos turísticos, bem encaixado em seu acolchoamento preto encadernado ou emoldurado... Um presente de Ramsgate... de toda forma, há quatrocentos anos marcham longe de Roma.

Tradução de João Medeiros.


[1] O Book of Common Prayer (BCP), ou Livro de Oração Comum, é o livro de ritos litúrgicos oficial da Igreja Anglicana.

[2] No sistema parlamentarista de Westminster, whips são os congressistas encarregados de apurar se os membros eleitos de seus respectivos partidos estão a votar de acordo com as ideologias partidárias.

[3] Chesterton faz um jogo de palavras com as alas da Igreja Anglicana, dividida normalmente em High Church, Broad Church e Low Church, a separar por costume litúrgico e teológico. High Church é a ala mais enfaticamente ritualista e próxima teologicamente do catolicismo; Broad Church é ala mais “moderada” ou “centrista”, com pensamentos entre o catolicismo e o protestantismo; já a Low Church é o oposto da primeira ala, mais próxima do protestantismo, em particular do calvinismo, e com pouquíssima ênfase em ritos e liturgias.

[4] Apelido pejorativo para pessoas naturais da Espanha, Itália, Portugal ou da América Latina.

[5] Grupo étnico-religioso de descendentes persas zoroastristas que emigraram do atual Irã para a Índia e Reino Unido em fuga das perseguições religiosas islâmicas.

[6] Membro do Parlamento.

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