Chesterton e a Vaca Sagrada



Muitos se espantarão ao ver que, ao pedirem que eu lesse o mais recente texto sobre a figura de G. K. Chesterton, “Chesterton, mais uma Vaca Sagrada dos Neocons”, escrito por um educadíssimo senhor de uma respeitabilíssima instituição, a Associação Cultural Montfort; estou, a bem da verdade, em concordância com ele.

No referido texto — que, antes de tudo, trata-se de uma resposta a uma dúvida —, o autor destaca um elemento que deveria ser perceptível a todos: que Chesterton é uma vaca sagrada da direita. E não só da direita…

Que o autor do artigo-resposta me perdoe, e os leitores atônitos mais à frente entenderão o pedido de desculpas; porém farei uso de um breve conto de fadas para ilustrar uma verdade que muitas vezes não é considerada. Noutro momento usei deste conto, e repito o uso, ainda que meramente para fins didáticos, deixando de lado o objetivo principal dos contos de fadas, que é… bem, deixemos o suspense aberto.

O conto em questão é a fábula da Cinderela. As pessoas costumam desconsiderar um importantíssimo elemento do conto que se encontra na compilação feita pelos irmãos Grimm. Após o Príncipe perder de vista Cinderela, tendo restado apenas seu sapatinho de Cristal, ele percorre todo o reino em busca do pé da moça que encaixasse perfeitamente no calçado. Contudo, para suplantar o lugar de Cinderela, a Irmã Feia, a mando da Madrasta Má, corta pedaços do calcanhar e dedos para que seus gigantescos pés coubessem no sapatinho de cristal. Ao final, depois da Irmã Feia ter enganado o ingênuo Príncipe, um pássaro, que cabe aqui destacar, era um pássaro mágico, vê o sangue escorrer pelos sapatos e denuncia a impostora, que, devidamente punida, dá lugar à verdadeira Princesa: Cinderela.

Eu não poderia concordar mais com o autor do texto quando ele diz que G. K. Chesterton é uma das “Vacas Sagradas” da direita. Vou além: Chesterton é uma das maiores vacas sagradas que temos atualmente. Uma de suas frases mais famosas é que, para conseguir viver materialmente bem, tudo o que um homem precisa é de três alqueires e uma vaca. Eu digo que tudo o que trezentos e quarenta e cinco mil homens precisam é de um Chesterton. O autor acerta quando diz que o nosso escritor é uma Vaca Sagrada.

G. K. Chesterton foi um jornalista. Seus pensamentos estão esparsos em milhares de artigos. Literalmente milhares. Contam mais de cinco mil artigos espalhados em diversos jornais. Foram anos escrevendo para jornais como o Daily News, Illustrated London News, The Eye Witness e G. K.’s Weekly, para citar somente os principais, pois se considerássemos as contribuições ocasionais, o número de periódicos saltaria ainda mais. Talvez chegando perto de seis mil artigos, muitos dos quais foram compilados posteriormente em livros, e mesmo livros que não são compilações de artigos, como é o caso de Ortodoxia; seus escritos padecem do mesmo gênero jornalístico de sua profissão. Com efeito, não é incomum vermos Chesterton dar apenas apontamentos a respeito de certos assuntos, deixando — ou não — o aprofundamento para um momento posterior.

Assim, vemos os protestantes acusarem nosso jornalista de possuir um argumento muito fraco contra os protestantes em Ortodoxia; vemos também os comunistas, os socialistas ou os liberais, dizendo coisas similares aos protestantes quando atacados pela sagrada vaca gorda da Fleet Street.

É óbvio que ninguém está obrigado a ler os dois mil artigos que Chesterton escreveu para o G. K.’s Weekly, ou os quase mil artigos escritos por ele em Daily News, The New Witness, etc.; ou mesmo seus quase cem livros publicados. Entretanto, apesar da inexistência da obrigação, o resultado de uma leitura parcial é inexorável. E quem quer que aspire escrever sobre G. K. Chesterton deverá ter ciência que cometerá, invariavelmente, alguma espécie de imprecisão ou injustiça. Onde temos melhor exemplo do que aquele atestado pela anedota contada por Chesterton: que, certa vez, um grupo de jornalistas contemporâneos seus o pararam com intuito de perguntar o que ele queria dizer ao falar de democracia? Tal é por vezes o breu que envolve a obra de Chesterton.

O corte da obra de G. K. Chesterton tem de ser analisado individualmente. Pode ser que façam por desconhecimento, mal entendimento ou por malícia, mas creio que ninguém negará a sua existência. Assim, por exemplo, quando o autor da resposta diz que “de fato, em todo o livro [Ortodoxia], Chesterton aproxima o conceito de Tradição à democracia liberal, algo que parece uma iniciativa bem liberal, a Tradição não advém de uma maioria, ainda que seja uma “democracia dos mortos” como parece idealizar Chesterton”, e comparamos com a explicação que o próprio Chesterton nos dá em 1935, percebemos que a crítica não casa perfeitamente. Vejam só vocês, incríveis vinte e sete anos depois da publicação de seu Ortodoxia, nosso escritor diz: muitos anos atrás, eu escrevi um livro sobre ortodoxia. Não proponho discutir aqui as controvérsias de que tratei nele. Mas a palavra enquanto palavra, enquanto um termo conveniente do dicionário da língua inglesa para ser usado como uma ferramenta na oficina de palavras em inglês, não deixa de ter um certo interesse próprio. A princípio, eu a utilizei porque era a única palavra que eu conseguia pensar para algo que às vezes é confundido com tradição, e às vezes é confundido com conservadorismo. “Ortodoxia” é a palavra para algo que pode ser antigo, e talvez seja oficial; mas não é verdadeiro por ser antigo, e certamente não é por ser oficial, mas apenas verdadeiro por ser verdadeiro. [...] Mesmo quando existe uma verdade na tradição, ainda devemos distingui-las como a tradição e a verdade. E devemos, sobretudo, atentar-nos sobre a mera preservação das tradições que não considera a fundo se tais tradições são verdadeiras”. Complementando a ideia de democracia em seu livro O Poço e os Charcos, Chesterton dirá que “esse é o ponto preciso dessa política tão prática. Seja um monarquista se quiser (e há muito a ser dito, e muito está sendo dito agora, por um governo mais pessoal e responsável); tente uma monarquia se achar que será melhor; mas não confie em uma monarquia, no sentido de esperar que um monarca seja algo além de um homem. Seja um democrata se quiser; expresse seu senso de dignidade humana através do sufrágio masculino universal ou em qualquer outra forma de igualdade; mas não coloque sua confiança no sufrágio masculino universal ou em qualquer filho do homem. Há um pequeno defeito no Homem… ele não é confiável. Se você o identificar com algum ideal, que escolheu acreditar ser sua natureza mais íntima ou seu único objetivo, chegará o dia em que ele de repente parecerá um traidor para você”; mostrando que está distante daqueles ideários quiméricos de enxergar na realização de um fim político a apoteose do homem. Há muitas e mais citações possíveis, mas creio eu que estas são suficientes.

Alguns scholars de Chesterton dizem que Ortodoxia é como o tronco do qual todo o restante da sua obra se desenvolverá. Talvez esteja mais para esqueleto. O esqueleto que servirá de suporte, por meio de todos os seus demais artigos e livros, compondo as veias, artérias, sangue, músculos e órgãos sendo alimentados com nutrientes pelo coração da Fé. O que nos é confirmado pelo telegrama enviado pelo Papa Pio XI, por meio do então Cardeal Eugênio Pacelli, seu Secretário de Estado que viria a se tornar o Papa Pio XII, onde se lê: “O Santo Padre está profundamente consternado com a morte de Gilbert Keith Chesterton, devoto filho da Santa Igreja, dotado Defensor da Fé Católica. Sua Santidade oferece paternais condolências ao povo da Inglaterra, promete orações pelo falecido amigo e outorga sua bênção apostólica”; ou mesmo os diversos encontros que GKC teve com Pio XI, que elogiou efusivamente sua obra e o condecorou Cavaleiro-Comendador com Estrela da Ordem de São Gregório Magno; razão por que, ainda que com o pesar das palavras do autor da Associação Montfort em dizer que “é no mínimo bem questionável essas posições doutrinárias deste escritor tão exaltado pelos neocon, mais uma vaca sagrada, um bezerro de ouro que está mais para ‘santo’ do pau oco”,  possuímos boas razões para bem considerar sua obra, em vista da aprovação, ainda que não formal, de um dos maiores papas dos últimos tempos.

A menos, é claro, que o autor instigue em considerar questionáveis as posições doutrinárias de Pio XI, o que não parece ser um bom negócio. Devemos culpar o nosso querido autor? De maneira alguma. A fama de Chesterton no meio conservador é grande. Seus ataques aos comunistas, niilistas et caterva fazem, em boa parte das vezes, com que ele seja tomado como um neoconservador. E o mau entendimento de sua obra agrava ainda mais a situação. Chesterton somente é uma Vaca Sagrada dos conservadores por não o entenderem e não o conhecerem apropriadamente.

Até mesmo entre aqueles scholars considerados, como é o (não tão estranho) caso do Padre Scott Randall Paine, onde num texto seu em que acusa, muito acertadamente, o sequestro de Chesterton pela direita brasileira, parece nem perceber que também sequestra a Chesterton quando diz que “além do mais, o fato de Chesterton ser católico é usado, às vezes, como comprovante do seu ‘conservadorismo’. Nada pode estar mais longe da verdade. As encíclicas sociais já provam isso. Mas a mesmíssima igreja à qual Chesterton jurou obediência incondicionada ia convocar o Segundo Concílio Vaticano, o concílio mais abrangente e global da história da igreja, e um que reorientou a postura da igreja para com o mundo moderno, o ecumenismo e as religiões mundiais. Posso afirmar que se Chesterton estivesse vivendo hoje, sem dúvida alguma, ele estaria lendo os documentos daquele concílio e promovendo a interpretação correta dos seus “desenvolvimentos” da doutrina cristã. Proponente audaz de uma tradição viva e aventureira, ele ficaria longe de qualquer tradicionalismo, com suas tendências de tratar a igreja como se fosse um museu”. Só nos resta o Padre dizer como conseguiu ter certeza do que G. K. Chesterton pensaria a respeito de um controverso evento que aconteceu décadas após a sua morte. Tratando-se de ecumenismo e de adaptação ao mundo moderno, não me espantaria que esta certeza viesse de uma mesa branca espírita.

Não obstante as inflexões do Padre Paine com relação a Chesterton para uma vertente continuísta, e até mesmo perenialista, como parece estar implícito no texto, vemos também gritarem a respeito de um Chesterton calvinista, de um Chesterton anarcocapitalista e sabe lá Deus mais o quê. Mas o fato continua: Chesterton é uma grande Vaca. As várias irmãs feias dilaceram a Chesterton para caber no sapatinho e adoram o que sobrou em meio ao sangue que dele escorre. Temos no final a Vaca Sagrada da direita, dos continuístas, dos perenialistas, dos calvinistas e de quem mais quiser. O nosso autor sempre esteve certo, as suas razões é que sempre estiveram erradas.

Por fim, poderíamos ainda discutir a acusação mais grave feita pelo nosso autor da Montfort ao citar o professor Orlando Fedeli, de feliz memória, onde este último diz que  “contos de fadas são deformantes, porque substituem o sobrenatural pelo prodígio mágico. São produtos de imaginações desviadas para um naturalismo esotérico, que prepara o espírito da criança a acostumar sua mente a buscar, por mera curiosidade vã, um mundo “mítico” imaginário”. Parece-me temerário, uma vez que levaria todas as avós ao tribunal de uma impiedosa inquisição, sem a tutela da caridade como aquelas ocorridas na Idade Média, pelo simples fato de terem contado historinhas sobre João e o Pé de Feijão aos seus netos, quando queriam apenas entretê-los e lhes ensinar uma pequena lição de moral, como a lição de moral da Cinderela que extraímos aqui: de que nenhuma falsificação é eterna, e que por vezes um pássaro mágico aparece e desfaz os planos da Madrasta Má e restabelece a justiça.

Chesterton pode ter errado em algo? Disso não tenho dúvida alguma. No início de sua carreira, sobretudo, é possível constatar alguns deslizes, ainda que por alguma espécie de milagre ele tenha chegado a muitas conclusões ortodoxas, como aquela de sua juventude em que disse a um jovem satanista que se “vivêssemos em uma democracia combativa, ele seria queimado numa fogueira por ser o adorador do diabo que é”; demonstrando, desde o início, sua repugnância por aquela característica típica dos regimes liberais: a indiferença quanto às religiões, o ateísmo prático.

 

William Christopher

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