O desafio do Cura d'Ars, por G. K. Chesterton


Originalmente publicado como Introdução à tradução americana de The Secret of the Cure d’Ars, de Henri Gheon (Nova Iorque: Sheed and Ward, 1938)[1].

 

A IGREJA CATÓLICA é universal demais para ser chamada de internacional, pois que ela é mais velha do que todas as nações. A Igreja não é uma espécie de ponte a ser construída entre essas ilhas separadas; ela é a própria terra e o fundo do oceano sobre o qual habitam tais ilhas. No entanto, como sempre foi hábil em trabalhar tanto com a variedade quanto com a uniformidade, ela agora é capaz de apelar para as nações enquanto nações, mas para apelar que aprendam umas com as outras ao invés de mentir umas sobre as outras.

As nações católicas são muito nacionais; mas cada uma se especializou em alguma verdade espiritual, assim como cada uma das guildas católicas se especializou em algum ofício técnico. Assim, a plenitude e a bondade da Fé abundaram na arte e no folclore flamengo; assim, o fogo e o cavalheirismo da Fé abundaram na história e na tradição polonesas. Os espanhóis mantiveram esplendidamente na pobreza aquela dignidade humana que nunca perderam totalmente, mesmo sob o peso da riqueza; os irlandeses guardaram um espaço livre para aquela estranha pureza da mente, na qual até o ódio se tornou algo claro e translúcido, comparado com os amores de outras terras. Da mesma forma, a catolicidade francesa reúne e dá expressão às virtudes vitais da França, da qual – é desnecessário dizer – foi a criadora na turva e turbulenta era em que os gauleses e os francos tornaram-se uma só nação; e é da própria natureza da França que o católico francês enfatize o fato de que a Igreja é um desafio.

Neste caso, sentimos o pior enfraquecimento da palavra “apologética” para a defesa do dogma cristão, e a degeneração verbal pela qual a coisa desafiadora uma vez chamada de apologia diminuiu para essa coisa fraca chamada de “apologia”. É claro que, na verdade, uma apologia é quase o oposto de uma “apologia”[2]. Mas é verdade, e em alguns casos pode até ser uma sorte, que homens de um tipo ou tradição um pouco mais branda muitas vezes defenderam o cristianismo, e mesmo o catolicismo, em um tom depreciativo e diplomático, o que pode ter soado “apologético” para alguns. Não há nada disso no típico católico francês. Não há nada disso no Sr. Henri Ghéon[3]. Não havia nada disso no Cura d’Ars[4].

O primeiro fato que impressionará qualquer um fora da Igreja Católica, e impressionará mesmo um bom número de pessoas dentro dela, na atitude tanto do autor quanto do tema deste livro, é que um francês desse tipo é essencialmente militante. Não há nada de “apologético” em sua apologética. Ele não é apenas propagandista, mas provocativo. É uma qualidade que pode, é claro, assumir formas boas e ruins; tal como pode ser colocada a serviço de causas boas e ruins. Mas sempre esteve evidente em ambos os lados da querela religiosa francesa um certo caráter insistente e irritante. Ouvi dizer que um prefeito cético de alguma cidade francesa não se contentou em pegar o metal de certos sinos de igreja, mas o fundiu para fazer uma estátua de Zola[5]. Ele fez a coisa mais irritante que conseguiu imaginar. Acredito que uma estátua de um grande livre-pensador francês, homenageado em países estrangeiros como um grande estudioso e erudito, foi erigida para ser uma glória para sua própria aldeia; e os aldeões instantaneamente o despedaçaram com pedras. Imaginem os aldeões em Surrey apedrejando uma estátua de George Meredith, porque ele era agnóstico. Colocando esse aspecto do catolicismo francês em uma palavra, a defesa não é meramente defensiva; a defesa é, no sentido honroso e militar da palavra, ofensiva. Como o Sr. Belloc[6] observou em algum lugar, “os franceses não lutam com relutância”.

Este livro é a história de um humilde e santo pároco, que viveu uma vida tranquila em um canto rústico. É natural pensar primeiro nele como gentil e pacífico; e em certo sentido, como todos os santos homens, ele era muito gentil e muito pacífico. Mas ele era, acima de tudo, desafiador. Se assim posso expressar, ele era acima de tudo uma irritação. Ele era uma contradição ambulante; e cortou toda as tendências de seu tempo em ângulos retos, e estava bastante contente em saber que o ângulo estava certo. Quase todas as pessoas de outra raça ou temperamento, como tantos ingleses e alguns alemães, tomam a sua divergência em uma espécie de curva, sentindo as forças ao seu redor como coisas que podem ser parcialmente seguidas se forem definitivamente deixadas para trás. Mas o Sr. Ghéon vê o Pe. Vianney principalmente como um protesto e uma negação: uma negação de todas as coisas que foram afirmadas com mais confiança naquele momento.

O padre Vianney apareceu na história durante o ápice da Revolução Francesa, quando esta proclamava verdades tremendas e falsidades tremendas com as trombetas do Apocalipse. E no meio de todos aqueles trovões, o Cura de Ars estava calmamente falando sobre algo totalmente diferente. O padre falava exatamente como teria falado se fosse um eremita celta da Idade das Trevas conversando com uma tribo selvagem de pictos. No exato momento em que o mundo humano parecia ter sido ampliado para além de todos os limites à vista de todos, ele declarou que o mundo era muito pequeno em comparação às coisas que quase ninguém podia ver. No momento em que milhares pensavam estar lendo uma filosofia radiante e autoevidente, comprovada claramente em preto e branco, ele calmamente chamou seu preto de branco e seu branco de preto.

Para nós, que vivemos no final da época racionalista e republicana, é difícil medir quão esperançoso foi o seu início, e quão desesperadora parecia ser a sua contradição. Pois a curva do mundo já começava a recuar um pouco mais diante da mística de tamanho santo; embora, infelizmente, a mente moderna tenha mudado com mais frequência negativamente pela desilusão do que positivamente pelo entusiasmo. Mas na atmosfera de sua própria época, ele era como um homem desenterrado da eternidade ou vindo de algum outro planeta. E, de fato, a discussão do mundo sobre tal homem deve sempre ser, em um sentido mais profundo, se ele surgiu da Idade da Pedra ou caiu das estrelas.

O Sr. Ghéon, autor de tantos dramas impressionantes, enxerga aqui principalmente o drama de tal desafio. Às vezes, sou tentado a imaginar que ele até exagera o contraste; não tanto entre o santo e o tempo, mas entre o santo e a vida comum. Mas reconheço nisso o exagero combativo francês, como aparece na biografia de Wilfrid Ward[7] sobre seu pai, referente ao paralelo das reações inglesa e francesa. Enquanto o Cardeal Newman[8] racionalizava contra o racionalismo em The Grammar of Assent, Louis Veuillot[9] atirava água benta na face dos racionalistas franceses, porque era a coisa que mais os exasperava. E há de fato um valor vital em enfatizar o contraste, como parte da controvérsia que diz respeito a todos.

Os críticos da Igreja são notavelmente azarados ao atacar a acusação de que ela pertence a um mundo feudal ou a determinados períodos do passado. Eles são levados a chamar tantas coisas modernas de medievais, que fica finalmente aparente que ela não é mais medieval do que moderna. Foi na monótona luz do dia do século XIX manufatureiro e materialista que a luz sobrenatural brilhou na caverna de Lourdes[10]. E foi em pleno amanhecer da idade secular da razão, introduzida pelo século XVIII, que uma auréola, que não era dessa época nem deste mundo, pôde ser vista em volta da cabeça do Cura d’Ars.

Tradução de João Medeiros.



[1] Nota do editor da Chesterton Review: Este artigo, que apareceu pela primeira vez como Introdução à tradução de Sheed de The Secret of the Cure d’Ars, de Henri Gheon (Nova Iorque: Sheed and Ward, 1938), foi enviado a nós por Robert A. Herrera, da Seton Hall University, que escreve: “Ao reler a edição de novembro de 1982 da Chesterton Review (Vol. VIII, No. 4), me deparei com uma carta do Sr. Robert Laversuch de Andover, Inglaterra, lamentando a falta de simpatia de Chesterton com a França e as coisas francesas. Este ensaio de Chesterton parece refutar essa acusação”.

[2] In fact, of course, an apologia is almost the opposite of an apology”; Chesterton brinca com a palavra equívoca apology, que significa majoritariamente “pedido de desculpas”.

[3] Henri Ghéon (1875-1944), nascido Henri Vangeon, foi um dramaturgo, novelista, poeta e crítico francês.

[4] João Maria Batista Vianney (1786-1859) foi um sacerdote católico francês. Também conhecido como Cura d’Ars por ser o pároco de Ars, França, São João Vianney foi canonizado pelo Papa Pio XI em 1925 e declarado padroeiro dos sacerdotes pelo mesmo pontífice em 1928.

[5] Émile Zola (1840-1902) foi um escritor francês considerado fundador da escola literária naturalista, bem como importante figura no desenvolvimento do teatro naturalista e do liberalismo francês.

[6] Joseph Hilaire Pierre René Belloc (1870-1953) foi um historiador, orador, poeta, polemista, soldado, parlamentar e escritor franco-inglês. Era o melhor amigo e colaborador íntimo de G. K. Chesterton; pela proximidade, a dupla foi apelidada por G. Bernard Shaw como “Chesterbelloc”.

[7] Wilfrid Philip Ward (1856-1916) foi um ensaísta e biógrafo inglês. Junto ao Barão Friedrich von Hügel, Ward era visto como um dos “dois principais pensadores católicos de sua geração”.

[8] John Henry Newman (1801-1890), também conhecido em português como João Henrique Newman, foi um teólogo, filósofo, historiador, acadêmico, escritor e poeta inglês convertido do anglicanismo ao catolicismo. Primeiramente um sacerdote anglicano, Newman abandonou sua antiga religião e converteu-se católico, sendo ordenado sacerdote para a Congregação do Oratório em 1847 e nomeado cardeal pelo Papa Leão XIII em 1879.

[9] Louis Veuillot (1813-1883) foi um escritor, jornalista e polemista francês. Adepto do ultramontanismo, doutrina dezenovista antiliberal que defendia a supremacia papal, Veuillot ajudou a popularizá-la na França.

[10] Aparições de Nossa Senhora em Lourdes, na França, ocorridas a Santa Bernadete Soubirous em 1858.

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