O texto que se segue é o capítulo IV do livro Avowals and Denials, escrito originalmente por G. K. Chesterton e publicado no ano de 1934. |
Notei que na nova parábola do Sr. Bernard Shaw, sobre a Garota Negra em busca de Deus[1], ele repete uma noção que ele e outros sugeriram frequentemente. É a noção de não apenas ser um homem incompleto, mas de adorar um Deus incompleto. Isso me divertiu um pouco, pois imediatamente me ocorreu que os progressistas futuristas e fabianos[2] que falam sobre a sua divindade como “ainda não devidamente apresentada”, está, de fato, fazendo exatamente o que a Garota Negra e todos os mais abjetos africanos selvagens são acusados de fazer. Os profetas hebreus, que o Sr. Shaw quase admira, e os missionários modernos, com quem ele é quase educado, sempre bombardearam idólatras e adoradores de fetiches com denúncias do fato mais ilógico e grotesco sobre sua fé: o fato que eles “adoram a obra de suas próprias mãos”. O selvagem negro africano pega um punhado de lama, cutuca e puxa em uma forma particular que é inteiramente produto de sua própria fantasia e então, embora ele saiba que ele mesmo acabou de fazer a coisa, consegue prostrar-se e adorá-la, como se aquilo fosse o criador de todas as coisas. E me parece que os teístas evolucionistas como o Sr. Bernard Shaw ou o Professor Julian Huxley fazem exata e precisamente a mesma coisa. Eles próprios conseguem fazer um deus; e então, de alguma forma, conseguem adorá-lo como o deus que os criou. Isso parece estúpido para minha mente simples; como pareceu às mentes simples dos profetas hebreus, dos legisladores muçulmanos e dos missionários modernos na África. É fabricar uma fé artificial e, então, esperar que seja tão natural quanto a natureza e tão sobrenatural quanto Deus. Em suma, esta extraordinária adoração da fé é tão semelhante à adoração de fetiche comum, de um ponto de vista racional, que não me surpreende que a Garota Negra pudesse passar tão rapidamente de um para o outro. Como uma pessoa antiquada, que ainda acredita que a razão é um dom de Deus e um guia para a verdade, devo limitar-me a dizer que não quero um Deus que fiz, mas um Deus que me fez. Mas essa não é a questão, a questão mais leve e menor, que eu pretendia levantar em conexão com esta questão de uma humanidade completa. A ideia do Sr. Shaw só está ligada a isso pelo fio fino e fantástico de sua teoria de um progresso permanentemente incompleto.
Talvez possamos chamar as duas filosofias antagônicas de filosofia da árvore e filosofia da nuvem. Quero dizer que uma árvore continua crescendo e, portanto, continua mudando; mas sempre nas bordas rodeando algo imutável. Os anéis mais internos da árvore ainda são os mesmos de quando era uma muda; eles deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser centrais. Quando a árvore cria um galho no topo, ela não se separa das raízes na base; ao contrário, ele precisa se segurar com mais força pelas raízes quanto mais alto sobe com seus galhos. Essa é a verdadeira imagem do progresso vigoroso e saudável de um homem, uma cidade ou uma espécie inteira. Mas quando os evolucionistas de quem falo nos falam sobre mudança, eles não querem dizer isso. Não dizem que algo produz mudanças externas a partir de um centro permanente e orgânico, como uma árvore; dizem que algo muda completa e inteiramente em todas as partes, a cada minuto, como uma nuvem. Não existe um núcleo de nuvem; não há cabeça ou cauda que não possa se transformar em outra coisa; não apenas muda, mas é em si mesma apenas uma mudança prolongada. Enquanto Hamlet e Polônio ficaram olhando para a nuvem, será lembrado que, naqueles poucos minutos, o príncipe conseguiu persuadir o cortesão de que a nuvem tinha uma corcunda como a de um camelo, que era uma doninha e que era uma baleia. Esse é o cosmos como entendido por esses filósofos cósmicos; o cosmos é uma nuvem. Ele muda em todas as partes; nem uma parte é mais permanente ou mesmo mais essencial do que a outra. Por falar nisso, é claro, os filósofos cósmicos mudam tanto quanto sua nuvem cósmica. Quando eu era menino, o universo foi concebido sob a imagem do camelo doente de Schopenhauer; um cosmos que certamente teve a corcunda. Depois disso, a Vontade de Viver, que foi lamentavelmente aceita por Schopenhauer, foi levada avante com muito maior vivacidade e tenacidade por pensadores práticos como o Sr. H. G. Wells, em alguns aspectos não muito diferentes de doninhas; e agora está assumindo mais uma vez contornos mais vastos e sombrios, mais monstruosos e mais misteriosos, como esboçado pelo Sr. Shaw e seus profetas hebreus: muito parecido com uma baleia. Pois o Sr. Shaw realmente me dá a impressão de que ainda está pensando em como a baleia pode ter engolido Jonas, ou como qualquer um pode engolir a baleia.
Agora, se esse desenvolvimento meramente nebuloso e sem ossos for adotado como uma filosofia, então não pode haver lugar para o passado e nenhuma possibilidade de uma cultura completa. Qualquer coisa pode estar aqui hoje e partir amanhã; mesmo amanhã. Mas eu não aceito essa evolução eterna, que apenas significa caos eterno. Como eu só aceito o desenvolvimento orgânico e ordenado de uma coisa de acordo com seu próprio desígnio e natureza, existe para mim uma cultura humana razoavelmente completa. Apenas a cultura cientificista moderna, avançada e progressista é irracionalmente incompleta. É, como disse Stevenson, “um negócio sombrio e pouco cavalheiresco; tira muito de um homem”. Agora, as coisas que tira fora do homem são quase exatamente as coisas que uma compreensão adequada do Natal, e das antigas festas religiosas da raça, provavelmente colocaria nele. Existe a ideia certa de dignidade, com sua companheira, a ideia certa de bufonaria; existe a verdadeira compreensão psicológica dos motivos da mentira e do disfarce. Existe aquele espírito, agora quase totalmente perdido, que levou nossos pais a descreverem até mesmo sua folia e alegria como as "altas solenidades" da ocasião festiva. Existe o profundo significado que está na palavra “múmia” e sua conexão com a noção de ser mãe. Existe um significado ainda mais profundo na palavra “mistério”, que também é realmente grego para ser mãe. Em suma, há a ideia de que, mesmo na ocasião festiva, naturalmente cheia de conversas e cantos, o mais sensacional é o silêncio. Tudo isso está repleto da ideia agora negligenciada de que algumas coisas são melhores para serem mantidas em reserva; que o melhor de todos os jogos de esconde-esconde é aquele em que algo permanece oculto; e que o cerimonial solene e religioso da caça ao chinelo[3] é mais impressionante quando o chinelo não pode ser encontrado. Todas essas velhas ideias de silêncio, de sacrifício, de um segredo que vale a pena guardar, inerentes ao antigo tipo de festividade de origem religiosa; e a festa da moda moderna é, em comparação, estéril, barulhenta e estridente porque tem uma origem irreligiosa. É significativo que, nos últimos dias, todo tipo de entretenimento público tenha sido chamado de “show”, com a implicação de que deve ser mostrado tanto quanto possível.[4] Às vezes, espera-se que o show leve ao que se chama de showdown, mas parece-me mais provável que toda essa noção moderna de show acabe sendo mostrada. Pois sua fraqueza é, de acordo com a filosofia sagrada da árvore, que ela não tem raízes ou que as suas raízes são muito rasas; é muito recente para estar enraizada no subconsciente ou para ter algo da dimensão da profundidade, na questão da memória e o que é chamado de “segunda natureza”. Não há o suficiente do ímpeto da humanidade por trás disso, e ela oscila e se cansa mesmo diante de nossos olhos.
Tradução por João Medeiros.
[1] Em 1932, George Bernard Shaw publicou o livro de histórias curtas e satíricas do cristianismo The Adventures of the Black Girl in Her Search for God.
[2] A Sociedade Fabiana, principal proponente do socialismo fabiano, fundada em 1884 na Inglaterra, encabeça o movimento político-ideológico criado com o propósito de implantar a revolução do ‘socialismo democrático’ através de um reformismo gradual e sem adesão à via revolucionária armada. George Bernard Shaw era membro da Sociedade Fabiana e seu principal difusor.
[3] Hunt the Slipper é um jogo em que um dos jogadores deve descobrir qual dos outros jogadores está segurando o chinelo, e outro, que está com o chinelo, deve buscar mantê-lo escondido.
[4] Chesterton faz um trocadilho com a palavra “show”, cujo significado é “mostrar” ou “exposição”.
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