Por que Newman foi mal entendido, por G. K. Chesterton

 

The Universe, 3 de fevereiro de 1933

Originalmente publicado na revista The Universe, este artigo foi republicado pela Chesterton Review no ano do centenário de Newman. Foi enviado à revista pelo Irmão Alban Hood, O.S.B., um monge da Abadia de Douai, que o encontrou entre os papéis pessoais do grande amigo de Chesterton, Dom Ignatius Rice, O.S.B., que era o regente da escola gregoriana abacial.

 

A grande fama do Cardeal Newman[1] ainda está aumentando de forma constante e lenta, e em breve será mundial; embora apenas quando ele atravessou há tempos para um mundo melhor, tal como o círculo feito pelo respingo de uma única pedra acabará por alcançar as margens remotas do maior dos lagos, muito depois da pedra haver desaparecido. O fato de sua fama aumentar parecerá bastante natural; que deveria ter se ampliado lentamente é talvez uma questão de interesse mais curioso, envolvendo as circunstâncias espirituais especiais do caso. A verdade é que sua mente, ao passar para o mundo exterior, atravessou duas barreiras de estranheza, que por sua vez a atrasaram.

Numa visão mais estreita, Newman era considerado alguém muito estranho ao seu próprio país; e, no entanto, na amplitude do mundo estrangeiro, ele passou a ser especialmente representativo do seu próprio país; e que um país, por variadas razões, é realmente muito difícil de ser entendido por estrangeiros. Para colocar a questão em um paradoxo compacto e conveniente: o primeiro estágio foi a dificuldade de explicar o seu anglicanismo aos anglicanos, e o segundo (em menor grau e por meio de erros menos óbvios) a dificuldade de explicar seu catolicismo, até mesmo aos católicos. No início, os ingleses aperceberam sua forma particular de anglicanismo como algo muito estranho e peculiar; e ainda, até o fim, há católicos que aperceberam sua forma particular de catolicismo como vagamente anglicana. Na realidade, é claro, esse grande católico inglês era inglês apenas no sentido em que um católico irlandês é irlandês; isto é, porque a Igreja Católica, a mais ampla de todas as irmandades, é ampla tanto em sua liberdade quanto em sua unidade; e se recusa a proibir inteiramente aquelas lealdades locais, que são proibidas pela estreita negação do mero internacionalismo. Entretanto, houve circunstâncias relacionadas à curiosíssima história religiosa e cultural da Inglaterra que fizeram de Newman uma figura bastante solitária, mesmo na Sociedade da Fé[2].

A ideia universal de uma “universidade” não transmite, necessariamente, a ideia de uma universidade inglesa, ou pelo menos das duas grandes universidades inglesas; a ideia europeia sobre “Igreja” não transmite a ideia inglesa da Igreja da Inglaterra; nem qualquer teoria geral sobre parlamentos ou aristocracias corresponde exatamente à posição da nobreza inglesa ou à tradição inglesa sobre um “cavalheiro”. Newman tinha exatamente o tipo de reclusão e sensibilidade, e algumas das inibições e hesitações herdadas daquela cultura insular; e, no entanto, ele tinha a visão e a convicção mais amplas que o impediam de simplesmente se contentar com aquela cultura. Entre os dois mal-entendidos, ele foi por muito tempo quase universalmente mal-entendido.

O primeiro mal-entendido, que preenche a primeira metade da vida de Newman, é o mais facilmente resolvido. Mas não era tanto uma ignorância da causa pelo catolicismo, mas uma ignorância de sua própria defesa sincera e plausível do anglicanismo. Foi uma ignorância da natureza do movimento saído de Oxford[3], muito além dos casos em que se tornou um movimento que foi para Roma. A Igreja Anglicana não compreendia seus próprios membros de ala high-church, tampouco compreendia aqueles que a trocavam por outra Igreja. Por exemplo: deve-se notar que Newman foi muito incomodado, tanto antes quanto depois de sua conversão, por pessoas que lhe perguntavam se era verdade que ele havia sido secretamente um papista enquanto professava ser anglicano. Ele respondeu-lhes à sua maneira hábil e delicada; mas ele não conseguiu superar o erro principal deles, não apenas sobre sua última, mas sobre a sua posição original.

Claro que não existe um homem que é secretamente católico; embora possa haver, por um tempo, algo como um homem secretamente decidido a se tornar um católico. Um homem foi recebido ou não, tal como ele foi batizado ou não batizado; porém a dificuldade não era que essas pessoas ignorassem a teoria católica da Igreja de Roma, era de que eles eram igualmente ignorantes da teoria anglo-católica da Igreja da Inglaterra. Para esse tipo de protestante robusto, o caso parecia um pouco assim: “Eu poderia respeitar um papista honesto uma vez que ele esteja na Igreja de Roma, mas, é claro, enquanto ele estiver na Igreja da Inglaterra, ele deve repudiar a Igreja de Roma. Portanto, se ele olhar para a Igreja de Roma, ou se apoiar a Igreja de Roma de alguma forma, ele está negociando secretamente com o inimigo”. Ele não entendeu que, pela teoria dita “anglocatólica”, a Igreja Católica na Europa não pode ser a inimiga. Toda a teoria compreende que é a Igreja Católica, mas que a Igreja Anglicana também faz parte dela. Tal clérigo high-church não deixa a Igreja da Inglaterra porque descobre, pela primeira vez, que a Igreja de Roma é católica. Ele deixa a Igreja da Inglaterra porque descobre que a Igreja da Inglaterra é protestante. Esse é o paradoxo: pois ele o faz quando pensa o que os protestantes também pensam. Embora ele discorde dos membros da ala low-church[4], permanece com eles no anglicanismo; é quando vem a concordar com suas ideias que ele os deixa.

Newman chegou à conclusão de que, quaisquer que sejam as graças e boas tradições que possam permanecer no anglicanismo, ele continuaria, em um sentido corporativo, a representar um vago protestantismo; e ele provou estar certo, apesar de muitos anglo-católicos admiráveis: a ação corporativa tem sido como aquela que permitiu ao Parlamento decidir a controvérsia do Livro de Oração Comum[5], ou a concessão num acordo sobre o controle de natalidade, ou encontrou seus representantes populares em homens como o Reitor Inge[6].

Mas, seja como for, é muito necessário para a compreensão de Newman enquanto um homem, perceber que ninguém apreciou seus argumentos reais para permanecer anglicano mais do que seus argumentos reais para se tornar um católico romano. Ele nunca se sentiu um anglicano popular e representativo, mesmo quando era perfeitamente leal e consistente. Então ele passou para a comunhão maior e começou a experimentar o outro lado do mesmo tipo de mal-entendido. Os representantes do catolicismo mais próximos de um nascido entre os ingleses eram, obviamente, os irlandeses, e não é fácil para que um inglês entenda um irlandês; e de todos os ingleses, Newman era talvez o menos apto para os entender. Ele poderia não ser mais um homem da Igreja Anglicana, mas ainda era um homem do Movimento de Oxford; e se ele não estava mais sob a autoridade da Cantuária[7], ainda estava sob a influência de Oxford. Assim, demorou muito para que os católicos da Irlanda, ou mesmo os católicos do continente europeu, compreendessem bem a intensa clareza de um catolicismo que havia crescido em um ambiente tão único — e até excêntrico; e o próprio brilho de sua própria compreensão interior parecia dar origem a nada além de mal-entendidos.

Sendo, de fato, um exemplo sublime da realidade de que a Fé pode crescer em qualquer solo, e que uma mente realmente clara pode ver a Igreja sob qualquer ângulo, Newman impressionou muitos dos seus novos correligionários como um estranho quase estranho demais para ser visto imediatamente um amigo. Disto, bem como de causas mais profundas, veio aquela qualidade peculiar e penetrante em sua literatura e em sua vida: a sensação de solidão e a sensação de necessidade suprema de lucidez.

Pode ser que um homem dificilmente pudesse se fazer entender de forma tão terrivelmente clara, como fez Newman em sua Apologia[8], sem essa consciência contínua de ser incompreendido. Newman endureceu a água em gelo ou martelou o ferro até que se tornasse em aço; e produziu aquele florete de estilo inglês, que é simultaneamente uma agulha e uma espada. Este é apenas um aspecto do grande homem, mas talvez seja o aspecto mais imediatamente atual naquela época; e é uma das muitas razões que tornam um estudo de Newman extremamente valioso na suprema crise dos nossos dias.



[1] John Henry Newman — transliterado: João Henrique Newman — (1801-1890), C.O., foi um sacerdote católico, escritor, historiador, filósofo, teólogo, poeta e acadêmico inglês. Inicialmente presbítero anglicano, Newman era docente da Universidade de Oxford; grande intelectual, era um muito erudito pesquisador atraído pela tradição high-church do anglicanismo que, através do estudo, abandonou a igreja inglesa e sua cátedra em Oxford e converteu-se ao catolicismo, sendo ordenado sacerdote em 1847. Foi criado cardeal-diácono pelo Papa Leão XIII em 1879. Foi beatificado pelo Papa Bento XVI em 2010 e canonizado pelo Papa Francisco em 2019.

[2] Chesterton se refere à Igreja Católica.

[3] O Movimento de Oxford foi um movimento da ala high-church da Igreja da Inglaterra (i.e., Igreja Anglicana) iniciado nos anos 1830. Seus membros, em sua maioria acadêmicos da Universidade de Oxford (e por isso o nome do movimento), propagavam a restauração de tradições cristãs mais antigas na liturgia e teologia anglicanas. Como resultado dos seus estudos, muitos membros do Movimento de Oxford acabaram por converter-se à Igreja Católica. Dentre os mais ilustres membros estão o supracitado Cardeal Newman, um dos líderes do movimento; o famoso novelista Mons. Robert Hugh Benson, o autor espiritual Pe. Frederick William Faber; o biblista, exegeta e tradutor bíblico Pe. Ronald Knox; e Dom Henry Edward Manning, Cardeal-Arcebispo de Westminster e Primaz da Inglaterra e Gales.

[4] Ala da Igreja Anglicana que dá pouca ênfase aos ritos, preterindo-o por liturgias ditas mais livres; e tem maior proximidade com o protestantismo.

[5] N.T.: ler O problema do Livro de Oração: https://www.estudoschestertonianos.org/2023/05/o-problema-do-livro-de-oracao-por-g-k.html.

[6] William Ralph Inge (1860-1954) foi um presbítero anglicano, escritor e professor inglês. Era o reitor da Catedral de São Paulo, razão pela qual foi popularmente alcunhado por Reitor Inge (Dean Inge).

[7] Chesterton refere-se ao Arcebispo da Cantuária, primaz da Igreja Anglicana e seu líder espiritual — pois o líder factual é o Rei da Inglaterra.

[8] Apologia Pro Vita Sua (português: Em Defesa da Própria Vida) é a autobiografia espiritual e apologética de Newman acerca de sua vida e de suas opiniões religiosas, bem como uma exploração do cristianismo e de sua natureza e lugar na modernidade. Escrita tardiamente em resposta aos ataques de seu contemporâneo Charles Kingsley, a trabalhadíssima e sincera Apologia de Newman tornou-se um best-seller e clássico do catolicismo inglês.

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