A liberdade religiosa, por Gustavo Corção

 


O Globo, 28 jan. 1987.

A DECLARAÇÃO conciliar sobre essa questão, (mal colocada e mal formulada) depois das considerações preliminares, que já comentamos em artigo anterior, e antes de espraiar-se à vontade na consideração dos problemas produzidos por uma sociedade laicizada e afastada de Deus, considerações essas que se desenrolam tranquilamente no plano de um estudo sociológico, adverte, com um toque de clarim, que vai falar como a Igreja católica fala. E lança efetivamente o tópico com o qual os leitores despreparados pensarão que todo o documento está afinado por aquele diapasão. Eis o texto:

SECUNDANDO com diligência estes anelos dos espíritos e propondo-se declarar quão conformes são com a Verdade e a Justiça, o Concilio Vaticano II investiga a sagrada tradição e a doutrina da Igreja das quais traz à luz coisas novas sempre coerentes com as antigas. Assim, pois, professa no primeiro termo o sagrado Concilio que Deus manifestou ao gênero humano o caminho pelo qual, servindo a Deus, os homens podem salvar-se e chegar a ser felizes em Cristo. Cremos que essa única verdadeira religião se verificou na Igreja Católica e Apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou a obrigação de difundi-la a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: "Ide, pois, e ensinai a todas as gentes. batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a observar tudo quanto Eu vos ensinei. (Mat. XXVIII, 19-20)

A DECLARAÇÃO conciliar continua nestes termos:

Por sua vez todos os homens estão obrigados a procurar a Verdade, principalmente no que se refere a Deus e a sua Igreja e, uma vez conhecida, abraçá-la e praticá-la.

A GORA NÓS: de início observamos que o texto católico inserido na Declaração já deixa entrever certo respeito humano em relação à vida sobrenatural quando diz "os homens servindo a Deus", e "chegar a ser felizes em Cristo". Este tópico é católico, mas a redação habitual com que diríamos o mesmo pensamento seria a seguinte: "o homem, servindo a Deus, só na Igreja (ainda que pertencendo a ela de modo invisível) pode alcançar no Céu as bem as aventuranças prometidas por Jesus". A única palavra discretamente sugestiva de uma necessidade de Salvação e vida eterna no céu é o termo "salvar-se". Mas não exijamos neste texto mais do que eles puderam redigir em língua católica.

NUMA APARENTE coerência, logo a seguir a Declaração continua:

Por sua vez todos os homens estão obrigados a procurar a Verdade; principalmente no que se refere a Deus e à sua Igreja. e, uma vez conhecida, abraçá-la e praticá-la.

ATÉ AQUI vamos bem, mas se a única e verdadeira religião se verificou na Igreja Católica, concluímos, com a Declaração, que: todos os homens estão obrigados a procurar a Igreja Católica, e uma vez conhecida, abraçá-la e praticá-la. Esta conclusão encerraria aqui a questão das outras formas religiosas, abraçadas e praticadas pelos homens.

MAS COM ESPANTO insuportável observamos que a Declaração arregaça as mangas para dizer que, não encontrando a verdadeira Igreja, e não podendo evidentissimamente ser levado de rastro, amarrado, a cumprir tão grave dever, esse homem está livre no direito de achar verdadeira outra religião. Mas, meu Deus, se o homem não cumpre um dever a que estava obrigado por instância superior, e abraça outra religião que ele acha ser a verdadeira, contrapondo assim sua consciência e sua vontade própria aos ensinamentos e à vontade de Deus, é inacreditável que a mesma Declaração que atrás formulou aquela obrigação passe agora, diligentemente, a proclamar que esse homem tem a liberdade e o direito de contrariar tão grave obrigação. Nós diríamos que ele tem a terrível liberdade da vontade própria para julgar-se único juiz de sua vida e para aderir a vícios e crimes que ele acha, na sua consciência autônoma, que serão perfeitamente válidos, como hoje se diz.

PARECE-ME que os redatores da Declaração, inebriados de "humanismo" e de antropocentrismo, já não se lembram de um ponto doutrinal de capital importância: a regra próxima do agir humano é a sua consciência, mas ESTA NÃO É A REGRA ÚLTIMA.

OS HOMENS que colocam na sua própria consciência a regra única de seu agir mataram Deus em seus corações. Ora, é precisamente isto que a esmagadora maioria dos homens do bravo mundo moderno, com diligência, acha e pratica. Para nós "le planisphère de la bêtise humaine est excédé", não quando é a pobre humanidade comum que se volta, se reviravolta, numa civilização do "homem exterior", ou do "homem subvertido", e que se extravia da casa do Pai; o que causa assombro é que hoje a hierarquia dita católica, já esquecida dos mais rudimentares princípios de teologia moral e entusiasmada com um mundo de pernas para o ar, seja a instituição mais empenhada em aderir às bandeiras do mundo e às suas reviravoltas. Mas o fato monstruoso parece inarredável.

INSISTO: ELES falam e "ensinam" como se a consciência fosse a regra próxima e única do agir humano. Dobro a parada: eles ensinam que a própria consciência e a própria vontade são a regra próxima e última do homem. E as consequências pastorais desse desvio doutrinal gravíssimo são bem conhecidas no mundo inteiro: nos confessionários e nos púlpitos dizem os padres que a missa dominical ou dos dias santos de guarda não é obrigatória: você irá ou não conforme ditar sua consciência. Ao leitor afastado dessas considerações explico, mais uma vez, que a consciência é efetivamente a regra próxima, como no navio a regra próxima é a bússola que indica a direção certa. Mas tanto a consciência como a bússola estão sujeitas a defeitos. No homem a principal ação do orgulho consiste precisamente em se enganar a si mesmo, antes de enganar os outros. Por isso, a nossa Santa Religião sempre recomendou o exame de consciência diante de Deus, e com a verdade da humildade, como nos diz Santa Teresa d'Avila, a grande doutora da Igreja.

PROVAVELMENTE todos os Padres conciliares que assinaram a Declaração estão convencidos, em suas consciências desligadas de Deus, que estão prestando ao mundo um trabalho de incalculável valor que hoje não sabemos bem apreciar.

A MAIOR PARTE dos homens do mundo moderno conhece alguma coisa da teoria freudiana da psicopatologia dos atos quotidianos, mas pouquíssimos são os homens que conhecem a malícia do amor próprio e pouquíssimos são os padres que ainda leem os autores espirituais.

A CONSEQUENCIA de todas as desatenções da vida interior e do desejo do serviço de Deus é o que se vê no mundo de hoje e agora, ofuscantemente, nas novidades de documentos conciliares que cobrem e eclipsam a Igreja. Onde está Ela? Certamente não foi Ela que assinou a Declaração conciliar sobre a liberdade religiosa.

CORÇÃO, G. A liberdade religiosa. O Globo, p. 2, 28 jan. 1987.

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