Um político no purgatório, por G. K. Chesterton

    

G. K.’s Weekly, 11 de abril de 1925    

   Quando os políticos rebaixam-se à questão da Igreja, até os jornalistas podem aspirar a isso. Sir William Joynson-Hicks, o Secretário de Assuntos Domésticos do atual governo, tem dirigido alguns comentários à uma multidão no Albert Hall; comentários sobre os quais preferiria comentar nesta coluna puramente pessoal. Pois nesta coluna, sou mais um colaborador do que um editor. Eu não comprometo nenhum dos meus colegas ou aliados nesta iniciativa com o que é, afinal de contas, um assunto da responsabilidade do indivíduo (altos aplausos protestantes, do Albert Hall).

O Secretário teria dito: “Não queremos interferência sacerdotal, não pedimos nenhum purgatório e não nos submeteremos a nenhum confessionário obrigatório”. A última cláusula desta declaração é especialmente um grande alívio para as nossas mentes. Não veremos mais nas ruas um policial agarrando um homem pelo seu colarinho e arrastando-o para o confessionário mais próximo. O nosso amor pela liberdade não ficará mais indignado com a sinistra caravana de camburões[2] carregando sua gangue diária de penitentes obrigatórios à Catedral de Westminster. Os principais pecadores sociais dos nossos tempos não serão mais vestidos à força em lençóis brancos e levados à porta do padre sob a ponta da lança. Tudo isso deve ser alterado agora; a confissão auricular não faz mais parte da Constituição Britânica, a ser aplicada com baionetas fixas. Deve ser deixada livremente à escolha e até mesmo ao capricho dos indivíduos, como todas as outras questões de opinião num Estado verdadeiramente moderno. Deve ser tão voluntária quanto a frequência a um determinado de escola pública é para os filhos dos pobres. Deve ser deixada tão livremente à escolha individual quanto a escolha de um plano de saúde para as classes trabalhadoras. Significa estar tão fora da lei quanto uma teoria médica específica sobre o poder curativo da varíola bovina. Deve ser tão completamente voluntário como a educação num estado moderno. Deve ser tão completamente livre como o serviço militar numa guerra moderna. O governo não sonhará mais em forçar um homem livre a confessar os seus pecados mais do que em forçá-lo a pagar os seus empregados ou a vacinar os seus filhos. Independentemente do que pensemos sobre aquele progresso protestante que conduziu ao estado moderno, todos sabemos, ao menos, que o estado moderno abandonou a ideia de compulsão em todos os departamentos. Alguns até duvidaram que estabeleceríamos a Lei Seca.

Mas a passagem que me interessa, até mais do que a revogação de todas as Leis de Coerção que até agora impuseram o confessionário ao povo inglês, é a frase singular que me vem antes disso. Ponho de lado a frase “não queremos interferência sacerdotal” por ser um pouco fraca demais para conter muitos fios de pensamento; todavia, faço uma pausa na notável frase “não pedimos nenhum purgatório”. Não faço esta pausa meramente pela óbvia irreverência sobre o homem que foi além e se saiu pior, nem sequer pergunto a Sir William do que é que ele se sente tão seguro de que não precisará de nenhum estágio de transição. A inferência estritamente lógica, de um homem que não precisa de purgatório, é que ele não tem nada para ser eliminado ou que não deseja que nada seja eliminado, mas essas especulações espirituais não são da nossa conta. O que me interessa não é o estritamente religioso ou teológico, mas a atitude geralmente filosófica e lógica implícita em dizer aquelas estranhas palavras: “não pedimos nenhum purgatório”. Refiro-me à atitude, não tanto em relação à verdade teológica, mas em relação a qualquer verdade; à própria ideia de verdade. Parece implicar que quando Sir William chegar aos portões do Outro Mundo, São Pedro ou algum anjo bem treinado lhe dirá em voz ligeiramente baixa, à maneira de um mordomo bem-treinado: “O senhor exigiria um purgatório?”. Talvez um paralelo possa ser o ponto.

Quando nós de uma certa filosofia abrimos os jornais e os encontramos cheios de artigos sobre ciência e religião, ou sobre o futuro das igrejas, sabemos muito bem o alcance da discussão. Nosso olho navega rapidamente coluna abaixo até encontrar o G maiúsculo que inicia “Galileu”, e vendo que este item foi devidamente inserido, ficamos satisfeitos e retornamos às nossas ocupações comuns. Podemos confiar que as pessoas que escrevem esses artigos não irão nos decepcionar. E como Galileu é, evidentemente, o único astrônomo de quem já ouviram falar, e a restrição imposta a ele pelos inquisidores é a única decisão da Igreja que eles já ouviram falar, é natural que julguem muitos assuntos à luz deste incidente, na medida em que eles estão familiarizados com ele. Eu não pretendo, aqui, estender essa familiaridade de forma alguma. Posso afirmar uma série de coisas sobre Galileu que não desprovidas de interesse. Posso salientar que, o que quer que ele fosse, Galileu não era o homem que eles admiravam; o homem que sofreu por fazer a primeira sugestão de que a Terra gira em torno do Sol. Posso avançar com o paradoxo de que a teoria copernicana foi proposta por Copérnico. Posso salientar que Copérnico ensinou astronomia em Roma sob a autoridade ortodoxa oficial. Posso apontar que muito antes de Copérnico formular sua teoria, ela já era sugerida em meados da Idade Média por Nicolau de Cusa, e que a Igreja perseguidora prosseguiu em persegui-lo fazendo dele um cardeal. A verdade é, penso eu, o exato oposto da sugestão comumente feita. Galileu não foi culpado por iniciar a questão, mas por encerrá-la. O que incomodava as pessoas era ele dizer: “Galileus locutus est, causa finita est”, ou, em linguagem científica moderna, dizer que a coisa deixava de ser uma hipótese para ser uma lei. Acredito que o que mais incomodou as pessoas foi o fato de ele ter declarado que a teoria poderia ser encontrada na Bíblia; é um hábito muito irritante em qualquer pessoa. Mas tudo isso, embora interessante em muitos aspectos, é familiar a todos, exceto àqueles que sempre o mencionam. E não foi neste contexto controverso que eu mencionei originalmente o nome do grande italiano. Aqueles que glorificam esse nome tão costumeiramente e tão imprecisamente têm o hábito de acrescentar uma anedota que também é, creio, imprecisa. Dizem que, ao se afastar do tribunal que havia negado o movimento da Terra, Galileu murmurou: “E ainda assim ela se move”. E quer ele tenha dito isso ou não, ele e os inquisidores teriam concordado, pelo menos, que ou a terra se movia, ou não se movia, e que nenhum deles poderia fazer qualquer diferença a tal fato, fosse ele qual fosse.

Entretanto, nunca ocorreu a Sir William Joynson-Hicks que quando ele diz, “não pedimos nenhum purgatório”, é exatamente como se todos os católicos respondessem a todos os defensores de Galileu levantando-se e dizendo em coro: “Não pedimos nenhum Sistema Solar”. Se o fizessem, Sir William Joynson-Hicks poderia começar a compreender que o Sistema Solar pode existir quer gostemos ou não, e que o Purgatório pode existir quer ele goste ou não. Se é verdade, por mais incrível que pareça, que a potestade que governa o universo pensa que um político ou um advogado podem chegar à morte, sem que eles estejam naquele êxtase perfeito de pureza que pode ver Deus e viver, é por que então pode haver condições cósmicas correspondentes a esse paradoxo, e há um fim para ele. Pode ser óbvio para nós que o político já está totalmente sem pecado, em sintonia com os santos. Pode ser autoevidente para nós que o advogado já é completamente altruísta, preenchido unicamente por Deus e esquecido do próprio significado de lucro. Mas se a Potestade Cósmica sustenta que ainda existe alguns estranhos retoques finais, além da nossa imaginação, a serem aperfeiçoados, então certamente haverá alguma provisão cósmica para aquela conclusão misteriosa do que está aparentemente completo. As estrelas não são limpas aos Seus olhos, e Ele acusa Seus anjos de loucura; e se Ele decidisse que mesmo em um Secretário de Assuntos Domésticos havia espaço para melhorias, só poderíamos admitir que a onisciência pode curar o defeito que nem sequer podemos ver.

Em nossa juventude, ouvimos muito sobre a reconciliação entre a religião e a ciência, e, num certo ponto, a verdadeira religião e a verdadeira ciência sempre foram reconciliadas. Nenhuma delas dará ouvidos a esta curiosa bobagem dos nossos tempos sobre estar reconciliado com qualquer coisa que esteja por aí. Pelo menos ambas falam como se existisse algo que se chama “verdade”, quer pensem ou não que as versões uma da outra são verdadeiras. Os biólogos não se levantam numa plataforma no Albert Hall e gritam desafiadoramente para uma multidão que aplaude: “Não pedimos nenhuma Grande Serpente Marinha”. As reuniões de massa na Royal Society sobre o tema da Matemática Avançada, na sua relação com as estrelas fixas, não são assistidas por um político que grita para uma multidão, como o antigo grego: “O que são as Plêiades para mim?”. Ninguém discute essas questões como se fossem única e inteiramente questões de moda e fantasia; de tornar as coisas mais atraentes ou simplesmente torná-las mais fáceis. Os médicos não dizem que atrairá mais estudantes de medicina dizer que a febre maculosa é o mesmo que catapora, e assim resolver o problema de “Por que as salas de operação estão vazias”. Os astrônomos não dizem que será mais conveniente para os jovens se o eclipse solar for fixado às cinco e meia em vez das seis e meia; e assim resolver o problema de uma nova geração que é indiferente aos sinais no céu. Ninguém propõe iluminar a geologia encontrando fósseis vivos em larvas derretidas para a diversão dos jovens. Ninguém propõe ampliar a botânica dizendo que as árvores frutíferas podem crescer como algas marinhas sem raízes. Nestes departamentos, ninguém pensa que poderá colher figos dos cardos ou fé dos animais que deles se alimentam. A ciência relata os fatos à medida que os encontra; às vezes nós podemos divergir sobre os fatos, mas não aqui, pelo menos sobre a natureza dos fatos. Nesse sentido, pode-se dizer verdadeiramente, numa expressão contemporânea muito comum, que a ciência tem uma mensagem assim como a religião sobrenatural tem uma mensagem.

Os vagos visionários do nosso tempo gostam de falar de mensagens; mas aparentemente não de pensar nelas. Não queremos um mensageiro que altere uma mensagem. Uma vez admitido que existe algo como um mensageiro sobrenatural, quase toda a conversa atual sobre ampliar e iluminar os credos torna-se quase absurda. É bastante razoável, em certas circunstâncias, não acreditar numa mensagem. Não é razoável, em nenhuma circunstância, distorcer uma mensagem. Se um homem vem até mim trazendo-me uma mensagem de minha mãe, pedindo-me para ir vê-la numa casa com uma porta verde oposta ao terceiro poste de luz na Old Kent Road, ou eu acredito que a mensagem é real ou não. Eu posso suspeitar que seja uma conspiração para me prender ou me matar em um antro de ópio, porque sei que minha mãe tem um horror à Old Kent Road ou uma aversão supersticiosa à cor verde; nesse caso, não irei de jeito nenhum. Mas seria um absurdo da minha parte aceitá-la como a mensagem de minha mãe e depois dizer: “Devemos acreditar que é a Old Kent Road? Não seria mais esperançoso, mais progressista, pensar que ela está na New Kent Road?”, como se ela não soubesse onde se encontrava; ou dizer: “Precisamos concordar que a porta é verde? Eu sempre prefiro imaginá-la como azul”, como se estivéssemos nos propondo de pintá-la, em vez de propormo-nos a encontrá-la. Ninguém permitiria que sua mente ficasse tão confusa sobre uma mãe de verdade e uma porta de verdade em uma rua de verdade. E se nos recusamos, no caso religioso, a imitar essa confusão, é porque consideramos a nossa mãe como real.


Tradução por João Medeiros.


[1] William Joynson-Hicks, 1° Visconde de Brentford (1865-1932), conhecido por Sir William Joynson-Hicks ou, mais popularmente, Jix, foi um procurador e político inglês membro do Partido Conservador, que serviu respectivamente como Ministro da Saúde e Secretário de Assuntos Domésticos.

[2] Originalmente, Chesterton faz uso do termo Black Maria, uma gíria inglesa que designa os veículos policiais de transporte de prisioneiros. A origem do termo remete à pintura preta ou azul-escura das vans policiais inglesas.

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